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Crônica

Os sinos já não dobram


Os sinos já não dobram - Gente de Opinião

O cético Ernest Hemingway, laureado escritor norte-americano, ganhador do Nobel de Literatura, em 1954, se inspirou no texto do poeta e clérigo inglês, John Donne (1764), para titular o romance Por Quem os Sinos Dobram? que narra a carnificina da guerra civil espanhola e o terrível drama de uma sociedade que se autodestruía. A inevitabilidade do fim da vida e com isso a desesperança e a futilidade das coisas, presentes nos romances do referido estadunidense e, de certa forma, na obra de Donne, marcaram seu ponto de vista existencialista, nos diálogos ficcionais com a morte. Tanto o pai, quanto o próprio Hemingway, escolheram o suicídio, como forma de driblar o tempo da vida, sem se preocupar com os desígnios místicos.

Com raríssimas exceções, já se vão longínquos os tempos em que a igreja se comunicava, numa espécie de código cristão, através das badaladas dos sinos da matriz. A TV, o celular e a internet emudeceram os sinos, melhor assim, imaginem se os sinos da catedral ainda anunciassem a morte de cada ser humano da paróquia? Nesses tempos de pandemia, teríamos uma imparável orquestração fúnebre, um réquiem de sinos à Raul Seixas, afetando ainda mais nossos já sensíveis nervos: “Canto Para a Minha Morte”.

Já chega o medo e a solidão se irmanando no esconderijo necessário à atuação do vírus. Ainda assim o silêncio dos sinos não apaga, do nosso interior, o sentimento de que a morte de qualquer pessoa, mesmo banalizada pela quantidade, nos diminui, porque somos partes do gênero humano: e por isso, ao assistires à TV Obituário, não perguntes por quem os silenciosos sinos dobram, eles dobram por ti.

Bem que eu gostaria de acreditar que quando morre um ser humano, um capítulo/vida não é subtraído do livro universal, mas traduzido para uma linguagem melhor, em outra dimensão, com a chance de ser reeditado várias vezes, até alcançar o idioma da luz eterna, no paraíso da paz e do amor.

Seria tão mais fácil, tão mais reconfortante, eliminaria a angústia do fim, imaginar e acreditar no pós mortem, sem dúvidas nem incertezas. Seria tão mais simples acompanhar a larga maioria e dizer amém ao desconhecido, desconsiderando a evolução, a ciência e a filosofia. Todavia, a administração, nada divina, da desigualdade no planeta, em todos os sentidos, a morte universal exageradamente continuada, sem pudor nem critérios racionais, enrubesce/constrange a certeza de tudo após a existência, simplifica os enigmas do propósito da vida, clareia o nada e arrefece o medo dos castigos cristãos.

São tantas as denúncias de descaso, no enfrentamento da pandemia, que hoje a pergunta mudou de sentido: por que os protestos verbais badalam? A falta de remédios, de oxigênio hospitalar, de UTIs, de precauções privadas, de liderança competente na distribuição das vacinas e o excesso do confronto imbecil entre imprensa e governo, transformaram as vozes populares em verdadeiros sinos fúnebres de protesto e só não são mais barulhentas porque a arrogância da Corte Suprema atraiu pra si todos os holofotes. Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme (JD).  

Como John Donne em suas Meditações, também tenho vontade de dialogar com a morte, na linguagem dos artistas, como não me considero poeta, empresto alguns versos de Paulo Coelho e Raul Seixas para meu paradoxal pré-réquiem de amor e ódio, ao som da pianista Andréa Figueiredo, interpretando o Concerto para Piano Nº 2, em dó menor, op. 18, de Rachmaninoff.

“Vou te encontrar vestida de cetim
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida”

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