Terça-feira, 23 de junho de 2020 - 09h15
Cristo apontou, muito cedo, para dom Moacyr, a Amazônia. Hoje, no coração do infinito, podemos reafirmar que Dom Moacyr Grechi, o “amigo de Deus, pastor e guia do povo” foi “pai, irmão e amigo” de todos.[1]
Do coração da Amazônia rumo ao coração de Deus, aquele que em toda sua vida foi movido pela “esperança que o animou a discernir, no contexto onde desempenhou o seu ministério, os sinais da vida capazes de derrotar os germes nocivos e mortais, ...que o sustentou na transformação dos próprios conflitos em ocasiões de crescimento, ... que se debruçou sobre a dor de cada homem e mulher que sofre, para cuidar das suas chagas, mantendo sempre viva a confiança” de todos, tornou-se hoje “um sinal luminoso de Cristo Pastor” (PG 4).
Quando a Ordem dos Servos de Maria enviou o frade Moacyr para cuidar da Prelazia do Acre e Purus, hoje, Diocese de Rio Branco, ele, que com 35 anos na época, acabara de ser eleito prior provincial da Província Brasileira dos padres e religiosos Servitas, após exercer por quase dez anos o cargo de mestre de formação dos seminaristas menores.
Profundamente humano, seguidor de Jesus e, de modo especial, de Maria, assumiu “permanecer aos pés da cruz de Jesus, ajudando a humanidade a carregar as suas infinitas cruzes, levando conforto, esperança e alegria”. Com a força da espiritualidade mariana aceitou ser nomeado pelo papa Paulo VI, em 1972, bispo da Prelazia do Acre e Purus, cargo que exerceu por 27 anos, assumindo a Arquidiocese de Porto Velho em 1998. “O povo do Acre me ensinou a ser cristão, a ser bispo, a me comprometer com o lado justo”, testemunhou anos mais tarde.
Em 1987, como Presidente do Regional Norte 1 da CNBB, Dom Moacyr Grechi ao apresentar o documento final da Assembleia Regional em Manaus, escreveu: “Somos, na verdade, uma Igreja em meio a um povo martirizado, injustiçado e escravizado de mil maneiras: nos povos indígenas gravemente ameaçados (alguns grupos já quase exterminados) pelos Grandes Projeto Governamentais, mineradoras ... nas migrações maciças e sem um mínimo de condições; nas grandes massas humanas que estão se concentrando nas periferias desumanas de nossas cidades; nos desmatamentos irracionais e em grande escala; na depredação de nossos rios; na multidão de jovens sem perspectivas de um futuro melhor”.
Diante de toda essa realidade de rápidas e profundas transformações, ele reafirmou “o firme propósito e compromisso de estar, como Igreja Regional, a serviço do projeto de Deus para este povo da Amazônia, que é sempre um projeto de vida, de salvação e de libertação integral”.
Para a Revista Pastoral, Dom Moacyr expressou em 1990 as prioridades pastorais da Igreja: “A grande prioridade nossa, desde, 1972, é formar e multiplicar agentes de pastoral. A segunda é a de formar Comunidades Eclesiais de Base. Hoje nossas Igrejas, fundamentalmente, são formadas por pequenas comunidades espalhadas pelas áreas de colonização, ao longo dos rios e pelas periferias das cidades que se formaram. A terceira prioridade é a pastoral indígena. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) nasceu em nossa região. Outra prioridade que sempre tivemos são as frentes pioneiras: como atender pastoralmente as populações que se deslocam aos milhares para a Amazônia?
Referência para os movimentos sociais, contribuiu com muita lucidez e intuição, para a criação e fortalecimento da organização dos seringueiros em favor da floresta e preservação do meio ambiente, dos sindicatos e suas lutas. Esteve à frente da Comissão Pastoral da Terra, do CIMI e Comissão Justiça e Paz, colocando sempre os pobres e excluídos como protagonistas de sua própria história e da ação evangelizadora da Igreja. Das CEBs, falou em 2012 ao IHU On-line: Eu tenho quarenta anos de convivência com as CEBs, admiro-as e fui, em parte, convertido por elas ...durante esses anos vi muitos atos de solidariedade, de amor, de ajuda ao outro. Vi pessoas caminharem dez quilômetros para ir a uma celebração na paróquia da comunidade para ouvir a palavra de Deus, rezar, para encontrar com outras pessoas e reforçar a sua fé.
Com o Papa Francisco, Dom Moacyr alimentou um sonho eclesial e por este sonho entregou sua vida: “a Igreja é chamada a caminhar com os povos da Amazônia” como em Medellín (1968), em Santarém (1972), em Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). “O caminho continua e o trabalho missionário, se quiser desenvolver uma Igreja com rosto amazônico, precisa crescer numa cultura do encontro rumo a uma harmonia pluriforme”.[2]
Um ano sem Dom Moacyr Grechi. É tempo de ouvir o Mestre, ele que tinha sempre a palavra certa e de esperança nos momentos mais difíceis ou de conflito. Assim, reunimos algumas mensagens e palavras dirigidas ao coração de muita gente:
Para os amigos de uma Fundação na Itália: Estou convencido de que o Doutor Marcello Cândia, o amigo dos missionários e irmão dos hansenianos, que nos deixou em 1983, permanece ainda na Amazônia, estendendo os braços samaritanos para os descartáveis da sociedade.
No Mutirão pela Amazônia, em 2005, Brasília, Dom Moacyr falou sobre a situação da Igreja na Amazônia: Foi na década de 70 que se percebeu melhor a necessidade de uma Igreja e de uma pastoral com rosto amazônico. Hoje, a Igreja percebe que carece de formação de quadros nas mais distintas lideranças dentro da Igreja; revitalização das CEBs, dentro de um novo quadro sócio-cultural-religioso; formação para a ecologia, como garantia de qualidade de vida e de um espaço habitável para as gerações futura; participação em uma educação, além da ambiental, que eduque para a paz e a solidariedade, em vista dos corredores de tráfico de drogas e contrabando que se implantam na região; desenvolvimento de uma consciência preservacionista e um espírito crítico frente aos modelos econômicos ligados ao agro negócios que tendem a estabelecer o seu triunfo na região com a implantação agressiva do cultivo da soja e pasto para o gado e a introdução de tecnologias agressivas ao clima tropical.
Em seu cuidado e predileção pelos doentes, recebia sempre pedido de orações: O mínimo que posso fazer é rezar e rezar muito. A meu pedido, pelo rádio, todas as manhãs, muita gente estará ao lado do vocês neste momento de dor. A misericórdia de Deus, mesmo quando, misteriosa, é infinita. Entregar tudo em suas mãos pode ser, como o foi para o próprio Filho na cruz extremamente doloroso "Porque me abandonaste?" Mas desabrocha na vida, na alegria e na paz. Nossa Senhora, vida e doçura nossa, protegerá vocês,
Ao líder de uma Comunidade: Ao amigo de caminhada, que me acompanhou muitas vezes nas Visitas Pastorais, falando com verdadeiro ardor missionário de cada comunidade e falando de sua dor de ser analfabeto. Em 2006, celebrei as bodas do casal, junto aos familiares e amigos: verdadeiro ambiente das bem-aventuranças. Deus o abençoe pela “sua fé ativa” (1ªTes.1,3), o Reino de Deus está presente nos lugares onde a ação de Jesus é continuada (Lc 17,21). Obrigado por ser este multiplicador do Reino de Deus.
Ao amigo de caminhada nas Comunidades Eclesiais de Base e na Formação Política: Você é essa minoria que soube, em sua trajetória de vida, expressar o milagre da transformação social, através de suas palavras e de sua vida pessoal, religiosa e política, experimentada no “cadinho” da resistência a toda prova.
Para um casal da Alemanha, repetiu as palavras de Dom Luciano “há sempre tempo para encontrarmos o rumo e nos colocarmos a caminho com esperança”.
Para Dom Moacyr Grechi, a experiência pessoal do prolongamento da paixão de Cristo nas infinitas cruzes da humanidade, aconteceu por ocasião dos dois acidentes que sofreu, o de julho de 2001 e o de novembro de 2004, e assim se expressou ao jornalista Altino Machado:
Juntamente com essa experiência da minha aceitação, isto é, da aceitação de Cristo à minha pessoa, eu era também levado, quase que instantaneamente, a ver os outros, a não excluir ninguém. Nesse sentido, lembrei a frase de São Paulo aos Coríntios que diz assim: Eu não posso prejudicar “o irmão por quem Cristo morreu” (1Cor8,11). Essa frase, “por quem Cristo morreu” brotou em mim, lá no fundo da alma. Todos, todos, todos sem exceção. Todos são irmãos por quem Cristo morreu. Essa experiência aumentou ainda mais em mim a certeza de que não posso esbanjar o meu tempo. Se eu recuperar a saúde, quero gastar o meu tempo para a única coisa válida: Amar o irmão, qualquer um que seja, por quem Cristo deu a vida. Lembro aquela frase da carta aos Hebreus: “Ele não se envergonhou de me chamar de irmão”. Como é que eu vou ter a ousadia de excluir alguém, um homem, uma mulher, um irmão por quem Cristo deu a vida. A outra experiência que eu fui percebendo pouco a pouco, que me levava também a um choro de gratidão, de admiração, quase surpresa, é a Solidariedade. Meus irmãos, a solidariedade dos pequeninos, dos grandes, dos médios; não havia pessoa nem família, perto ou longe, que de alguma maneira não me fizesse chegar a sua solidariedade, a sua oração, as suas palavras.
A solidariedade de Dom Moacyr sempre teve nomes concretos de hospitais, escolas, capelas, igrejas, centros sociais, comunidades, juventude, presídios, emissoras de rádio, canais de televisão, faculdade, sindicatos, livrarias, associações: “Ele ficará na história eclesiástica do Brasil como um bispo do Brasil profundo, da Amazônia de Chico Mendes e dos povos indígenas, dos ribeirinhos e dos seringueiros que sempre defendeu” (Leonardo Boff).
Doralice Veloso Camargo,
Atuou na Assessoria de comunicação de Dom Moacyr Grechi (1990-1994; 2003-2012).
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