Domingo, 1 de fevereiro de 2015 - 09h02
Luiz Albuquerque
Se você não conhece a Amazônia possivelmente não deve saber o que é um “recreio”. Pois “recreio”, principalmente para os ribeirinhos, é o nome dado às embarcações que navegam transportando mercadorias e passageiros de um lugar para outro, entre Vilas, Distritos, Municípios e até Estados. São barcos, de madeira ou de ferro, de tamanhos variados, que podem ter de um a três “passadiços” (ou pisos, andares, como queiram). Alguns, dos grandes, chegam a transportar mais de duzentos passageiros por viagem. São pessoas, famílias, que viajam dias ou semanas tendo como espaço para transitar, unicamente, o tamanho do barco e de seus passadiços. Usam redes para passar os lentos dias e também para dormir. Com tanta gente, as redes são “armadas”, ou seja, penduradas nos armadores, encostadas umas às outras ou umas sobre outras. O café da manhã, o almoço e o jantar são servidos em uma longa mesa, no meio do salão. Como não dá para todos comerem ao mesmo tempo, as pessoas se sentam, comem e se retiram, dando lugar a outros passageiros para que venham sentar-se à mesa. Os pratos e talheres são trocados e o alimento reposto. Após todos terminarem, a mesa é suspensa e presa ao teto, deixando, assim, o espaço livre para a armação das redes. Incrivelmente, talvez pelo costume, a aparente bagunça funciona relativamente muito bem.
Aconteceu que, numa viagem entre Manaus, a bela capital do Amazonas, e a pequena e agradável cidade de Lábrea, que fica na margem direita do Rio Purus (um dos maiores afluentes do lado direito do grande Rio Solimões), o barco zarpou numa Sexta Feira por volta das sete da noite. Na primeira noite, como costume, não servem o jantar e, por isto, muitas pessoas se acomodam e vão dormir logo após a partida do “motor” (este é outro nome que se dá ao barco, ou recreio, ou embarcação).
Aquele era um barco grande, com vários espaços: No vão do casco, ou porão, são colocadas as mercadorias e também é onde fica a “casa das máquinas” com seus motores. A cobertura desse porão é o primeiro passadiço (ou piso), onde dormem os passageiros de segunda classe, ou seja, aqueles que pagam a passagem mais barato. No passadiço acima dormem os passageiros da primeira classe. O barulho do motor 24 horas por dia, que perturba mais no andar de baixo, é, talvez, a única diferença que faz com que os passageiros de 1a classe paguem um pouco mais caro que os de baixo. Também têm camarotes, mais caros, e que, naquele barco, eram seis. São pequenos, só comportam um beliche de duas camas e um ventilador. Mais acima fica o terceiro passadiço (ou terceiro andar), onde funciona a lanchonete e o bar, que, geralmente, fecha às 22 horas. Este é um ótimo lugar para se tomar sol e se deliciar com as inigualáveis paisagens dos rios e matas ou com as estreladas noites amazônicas. Afora camarotes, casas de máquinas, cabina de comando e porão, todos os demais espaços e serviços são para uso de todos os passageiros, incluindo aí os 4 banheiros (dois “eles” e dois “elas”) sempre ocupados, mas que ninguém se importa muito com a demora. Alguns barcos, mais luxuosos, chegam a ter camarotes com ar refrigerado e banheiro privativo, mas estes, quase sempre, viajam para cidades maiores, geralmente entre as capitais. Pois naquele pequeno universo lá iam todos. O barco, lento, segue seu rumo, singrando dias e noites os rios, verdadeiras estradas da Amazônia.
Já no domingo pela manhã surgiram os primeiros comentários sobre um casal, passageiros do camarote nº 1. A mulher só saíra do camarote para ir se banhar, enquanto o homem, além de ir ao banheiro, buscava comida na cozinha para os dois. Comiam no camarote, após o que ele ia deixar os pratos sujos e trazia garrafas de água mineral. E só! E assim foi durante toda a viagem. Não falavam com ninguém nem saíam do camarote para outras coisas. Passaram-se os dias: domingo, segunda, terça, quarta-feira...
O Rio Purus é um rio novo, em formação, com águas barrentas por causa dos barrancos que desabam às suas margens. É um rio que, por ainda estar abrindo caminho na terra, é muito sinuoso, e isto faz o barco demorar-se nas intermináveis curvas, também chamadas de praias. A demora também se dá por outros fatos, como as paradas para apanhar ou deixar passageiros ou pela espera de quatro a seis horas para embarcar e desembarcar mercadorias em cada uma das pequenas cidades intermediárias, todas de nome indígena como Pauiní, Tapauá, Canutama.. A pressa, por ali, é algo estranho e distante.
A chegada a Lábrea se deu pouco depois da meia-noite da 5a para 6a feira. Antes de colocarem a prancha para os passageiros saírem, de um pulo entra no barco um sujeito grande e forte, que tira da cinta uma arma. Sustos, gritos, desmaios até. Debandada, gente pulando em terra e no rio, caindo ou se jogando. O cara vai direto ao camarote n.º 1. Esmurra a frágil porta enquanto grita “Arlete! Abre esta porta senão eu arrombo!” Berra, xinga!
A porta é aberta e ele entra, com violência. Ato contínuo, a porta é fechada. Suspense, gritos! A voz do sujeito, urrando, “Sua cadela!” e “Vou matar vocês dois, safados!”. Muitos berros. A mulher e o outro homem também gritam. Barulho de corpos se chocando contra as fracas paredes de madeira do camarote. Lá fora, todos em suspense. “Vai lá”, diz um. “Ele vai matar os dois”, diz outro. “Chama a polícia”, sugere um terceiro. Depois, as vozes vão baixando o tom. Após algum tempo, ninguém de fora conseguia escutar o que se falava lá dentro. Um soluço, choro. Quase nada se ouvia. Um sussurro, uma leve alteração de voz, talvez.
O homem invadira o local já há mais de trinta minutos quando chega um soldado da policia. Bate à porta e, com a autoridade que lhe é devida, berra: “Abre. Polícia!”. A porta é aberta e a autoridade entra. Pouco tempo depois saem o homem invasor, a mulher e o policial. Conversam fora do barco, em terra. O policial se vai, reclamando do sono perdido. Em seguida o casal vai embora, ele carregando as malas da mulher. O outro homem continua no camarote, com a porta fechada. Nada mais. Fica só curiosidade.
A noticia corre. Todos querendo saber o que houve. A explicação veio através de alguém, amigo do policial, e que com ele conversara após a liberação do casal: “É que a mulher tinha fugido com o cara. O marido dela soube para onde vinham, pegou um avião em Manaus e veio esperá-los aqui”. Muitos comentários, risadas. Todos lembrando os momentos, tanto da viagem como da confusão. Aos poucos se recolheram às suas redes.
Quase quatro horas da madrugada. No barco, quase todos dormiam. Alguns passageiros conversavam, aguardando o dia raiar para ir para casa. De repente, entra no barco, novamente, o grandalhão, marido da mulher. Agora calmo, ele bate à porta do camarote número um, suavemente, como que com medo de acordar o outro. Chama “Renato? Ô Renato!”. De dentro o outro pergunta, com voz sonolenta: “O que é?”. E o cara, de novo: “Desculpe! Mas é que a Arlete esqueceu dentro aí uma toalha e duas calcinhas, que estavam secando. Dá pra você me entregar?”
Luiz Albuquerque (Manaus/AM), EM Porto Velho desde 1979. É consultor comercial, escritor e editou o projeto “Leitura no Ônibus”
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E-mail: lccalbuquerque@gmail.com
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