Segunda-feira, 2 de janeiro de 2017 - 22h17
BRASIL 247 - Além de uma larga experiência como gestor público, o senhor possui experiência no mundo científico. Com base neste conhecimento, eu gostaria que falasse sobre a importância de garantir a posse de Nisia Trindade Lima à frente da Fiocruz, que teve mais de 60% dos votos num pleito ao qual compareceram mais de 82% dos servidores aptos a votar. Quem ganha com ela? Quem perde?
ARTHUR CHIORO - É um retrocesso sem precedentes. Inaceitável. Subverter a decisão democrática tomada pela comunidade de pesquisadores, docentes, cientistas e funcionários da Fiocruz coloca em risco uma instituição secular, respeitada internacionalmente, que tem uma enorme relevância para a ciência, o ensino, a pesquisa, a assistência à saúde e para a produção de medicamentos, vacinas e insumos. Não há justificativa ou sequer um argumento plausível que sustente tal decisão. É um verdadeiro escândalo. Quem perde não é apenas a Fiocruz, mas o Brasil. Trata-se de uma instituição transparente, eficiente, com excelentes resultados em todos os seus campos de atuação e que tem um papel fundamental para a saúde pública e a ciência brasileira. Esse desastre só interessa aos que querem transformar a Fiocruz num balcão de negócios privados, inconfessáveis, destruindo um patrimônio de toda a sociedade brasileira.
247 - Concretamente, por que a Nisia Trindade Lima é a melhor pessoa para dirigir a Fiocruz neste momento?
CHIORO - Porque Nísia Trindade tem legitimidade, advinda do processo democrático que resultou em sua eleição com cerca de 60% dos votos para presidir a mais importante instituição da Saúde Coletiva brasileira. Não se trata apenas de garantir uma tradição bem sucedida, que já vigora há décadas de nomear aquele que é sufragado pela maioria. A Fiocruz construiu um processo de planejamento e organização interna que se sustenta em bases democráticas, com ampla participação e que foi decisivo para que pudesse se solidificar e obter reconhecimento internacional no campo científico, da inovação tecnológica, da produção de conhecimentos, da formação de pessoal altamente qualificado e da prestação de serviços e extensão. Não podemos ignorar, também, as características de Nísia. Trata-se de uma profissional extremamente séria, competente.Seu preparo não se discute, Acumulou uma grande experiência como gestora, participando da Direção Executiva da Fiocruz ao lado do atual presidente Paulo Gadelha. Está comprometida e conhece como poucos a instituição e tem um excelente relacionamento com a comunidade científica, interna e externa, com os técnicos das diferentes áreas do Ministério da Saúde, com os demais gestores do SUS e com os parceiros institucionais da Fiocruz.
247 - Muitos brasileiros não têm uma noção correta da atuação da Fiocruz para a saúde pública e o bem estar da população. Seu papel tem origem nas campanhas de Oswald Cruz, no início do século passado, e chegam à dengue, à febre chikungunya...
CHIORO - Criada por Oswaldo Cruz em 1900 para fabricar soros e vacinas contra a peste bubônica e erradicar essa doença e a febre amarela no Rio de Janeiro, a Fiocruz transformou-se em uma das mais importantes e conceituadas instituições de Saúde Pública não apenas na América Latina, mas em âmbito mundial. São 116 anos de dedicação à ciência e à saúde da população brasileira. Foi peça chave na criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1920. Foi responsável pelo isolamento do vírus HIV pela primeira vez na América Latina e outros grandes avanços científicos, como o deciframento do genoma do BCG, bactéria usada na vacina contra a tuberculose. A sua Escola Nacional de Saúde Pública é a instituição que mais forma especialistas, mestres e doutores no campo da Saúde Coletiva nas Américas e que publica revistas científicas indexadas e conceituadas internacionalmente. É responsável por parcela importante da produção nacional de medicamentos, vacinas, protótipos, biofármacos e reativos para diagnósticos. A indicação da pesquisadora Celina Turchi como uma das dez personalidades do ano na ciência mundial pela revista Nature, em função de seu trabalho para o estabelecimento da relação entre o vírus zika e a microcefalia em bebês, o registro de testes para zika, dengue e chikungunya são exemplos da importância destacada da Fiocruz para a saúde e a ciência brasileira.
247 - Ao contrário do que muitas pessoas conservadoras costumam imaginar, a gestão democrática da Fiocruz trouxe bons resultados para o país. O senhor poderia explicar isso?
CHIORO - Como tantas outras instituições públicas voltadas ao ensino e a pesquisa científica, a Fiocruz tem sofrido duramente nas mãos de governos autoritários. Perdeu sua autonomia com a Revolução de 1930. O golpe de 1964 produziu aquilo que se chamou Massacre de Manguinhos: a cassação dos direitos políticos de grandes cientistas e pesquisadores. Desde 1980, período marcado pela retoma das lutas contra a ditadura, a Fiocruz vem experimentado uma saudável organização democrática e participativa. Na gestão do médico sanitarista e ex-deputado federal Sergio Arouca foi realizado o 1º Congresso Interno. Foram recriados programas e sua estrutura foi modernizada. Nos anos seguintes, a instituição foi se fortalecendo e cresceu – inclusive para outros estados - a partir de um processo de planejamento participativo que fez com que metas, compromissos e responsabilidades fossem perseguidas pelas áreas de pesquisa e ensino, produção e inovação, serviços de saúde, comunicação e informação. Sua estrutura regimental, moderna e democrática, foi regulamentada em 2003, pelo presidente Lula. Desde a redemocratização do país, todos os ministros da saúde, independente de sua vinculação partidária, puderam contar com a Fiocruz como parceira de primeira ordem para o fortalecimento do SUS. Jogar uma instituição desta importância e complexidade num crise sem precedentes é uma temeridade, uma enorme irresponsabilidade. Não apenas pelo que representa para o Rio de Janeiro, mas para todo o país. Não acredito que Michel Temer queira ser protagonista de mais uma crise desnecessária, determinada por um jogo de interesses menores, mal explicados, que levou o ministro da saúde a apoiar a candidata derrotada, numa postura que pode resultar numa situação de confronto que terá graves repercussões para a ciência e a saúde pública brasileira.
247 - Logo depois de ser anunciado, o ministro Ricardo Barros deixou clara sua preferência pela saúde privada, a partir de uma visão segundo a qual a saúde pública era muito cara para um país como o Brasil. Qual a relação entre essa preferência política e a recusa em aceitar a vontade da maioria dos funcionários?
CHIORO - A sucessão de polêmicas e decisões desastrosas, sem fundamentação técnica e científica, sempre avocando um frágil discurso de qualificação e modernização da gestão, dão a falsa impressão de que a gestão de Ricardo Barros é apenas incompetente, folclórica e desastrosa. Mas é muito pior do que isso. Temos um ministro anti-SUS. Uma gestão marcada por uma prática obscura, a serviço de interesses que não se expressam claramente. Enganam-se os que acham que o que está em jogo é impedir a posse de uma ‘técnica de esquerda’, com posicionamentos contrários ao do governo (até mesmo porque a segunda colocada expressa publicamente também convicções de esquerda, a despeito de sua atual postura antidemocrática). Quem conhece Nísia Trindade sabe que tem compromissos com a saúde pública. Sabe separar muito bem suas convicções políticas das responsabilidades e tarefas que terá a frente de uma instituição pública do porte da Fiocruz.
247 - Muitos brasileiros não fazem ideia da importância da Fiocruz para a saúde da maioria da população. O senhor poderia falar um pouco a respeito?
CHIORO -- A Fiocruz tem uma participação expressiva na produção de medicamentos, soros, vacinas, kits diagnósticos e produtos biotecnológicos. As maiores e mais importantes Parcerias de Desenvolvimento Produtivo, com laboratórios nacionais e internacionais, fundamentais para a sustentabilidade do SUS, a inovação tecnológica e a autonomia científica do nosso país estão sob responsabilidade da Fiocruz, em particular as que envolvem os produtos com maior custo e valor agregado. Do orçamento federal previsto para assistência farmacêutica e insumos estratégicos para o SUS em 2017, cerca de 4 bilhões de reais serão gastos pelo Ministério da Saúde em compras públicas com a Fiocruz. Isso faz com que a instituição seja objeto de desejo e controle político, em particular daqueles que ficam sem espaço para suas manobras em ambientes democráticos, transparentes e com controle público. Além disso, a Fiocruz acaba tendo um papel decisivo como reguladora do mercado e na definição de muitos negócios (públicos e privados) no âmbito do Complexo Industrial de Saúde. O que está em jogo é a tentativa de alterar o posicionamento histórico da instituição em prol do desenvolvimento científico e tecnológico, que sempre esteve pautada por uma postura republicana, transparente e ética inquestionável - e fundamentada nas melhores evidências científicas. Isso tem sido fundamental para o desenvolvimento do Complexo Médico Industrial brasileiro e será colocado em risco.
247 - A experiência do regime de 64 mostra que governos autoritários sempre tentam cooptar uma parcela da comunidade científica. No período de instalação da ditadura militar, abriu-se uma longa temporada de caça a pesquisadores de altíssimo nível, que foram perseguidos por razões políticas e acabaram obrigados a levar seu talento e seu conhecimento para outros países. O senhor acha que essa intervenção na Fiocruz pode inaugurar uma situação parecida?
CHIORO - Os trabalhadores e a comunidade científica da Fiocruz não aceitarão essa decisão. Se mantida a indicação da candidata derrotada estará estabelecido um clima de confronto, uma crise sem precedentes. E quando se pensa em pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica, acima de tudo é necessário assegurar um ambiente de serenidade e muita estabilidade. Até quando irão continuar apagando incêndio com gasolina em nosso país? Quando terá fim o desmonte das instituições públicas brasileiras? Como vamos sair da crise em que o país foi metido com atitudes bizarras como essa? É importante ainda destacar o grave precedente que essa ação desastrosa na Fiocruz pode representar para outras instituições públicas caso se consume. As universidades públicas federais oferecem listas tríplices para que o presidente da República proceda a nomeação dos reitores. Dirigentes de outras instituições da administração pública indireta também são nomeados, conforme rezam seus estatutos e regimentos, a partir de processos democráticos de indicação e provimento de sua governança. Essa decisão precisa ser revertida em prol da democracia e do país.
247 - Produto de um golpe parlamentar, o governo Temer tem uma dificuldade particular para conseguir apoio entre artistas, intelectuais, estudiosos. O senhor acha que essa intervenção pode abrir um caso semelhante ao do ministério da Cultura?
Espero que o presidente tenha desta vez juízo e serenidade e proceda a imediata nomeação de Nísia Trindade. O caminho do confronto, da crise, da instabilidade não interessa à população brasileira e destruirá a Fiocruz. Uma instituição que foi criada em mais de um século e que pode ser destruída por um ato injustificável, de prepotência e desrespeito à democracia.
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