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Impedir o golpe é uma questão de cárater


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Em três meses fora do Planalto, Dilma Rousseff consumou uma vitória essencial para o futuro de nossa democracia, ao ganhar o debate político sobre a natureza de seu afastamento. Numa virada respeitável, a situação pode ser resumida assim: para além do círculo de políticos, empresários, meios de comunicação e jornalistas diretamente interessados numa derrota histórica do projeto político construído em torno de Luiz Inácio Lula da Silva, pode-se dizer que não há quem não esteja convencido, dentro e fora do país, de que sua saída da presidência representa um golpe de Estado, inaceitável pela própria natureza.

Iniciado na última quinta-feira, o confronto entre testemunhas de acusação e defesa completou com vários detalhes técnicos o desmonte das principais teses dos adversários construídas para justificar o afastamento. Para completar, a presença de Dilma no Senado, na segunda-feira, 29 de agosto, marcou um momento de histórico. A presidente fez uma apresentação soberba. Dispondo de uma tribuna pública que jamais lhe foi oferecida para apresentar seu ponto de vista, teve clareza e competência para demonstrar seus pontos de vista e derrubar, uma a uma, as alegações de seus adversários, desde o início empenhados em encerrar aquela jornada delicada para seus propósitos no prazo mais rápido possível.

Mas hoje, quando o debate sobre o destino de Dilma ingressa na fase de deliberação final, as condições de temperatura e pressão no Senado estão longe de refletir aquilo que se pode ver e ouvir pelo país inteiro, nos últimos dias.

As chances de a presidente vir a ser afastada definitivamente seguem mais do que enormes. Isso ocorre apesar da clareza da argumentação contrária, da solidez dos dados apresentados, da desmoralização contínua do governo interino, incapaz de disfarçar o caráter regressivo de um projeto que jamais seria vitorioso caso fosse submetido a debate numa campanha eleitoral. Não é difícil explicar essa diferença entre o que se sabe e o que pode acontecer em breve, talvez nas próximas horas.

Iniciado na AP 470, em 2005, o massacre brutal do Partido dos Trabalhadores e seus aliados, que inclui a perseguição permanente a Lula e longas prisões de lideranças políticas e empresários vinculados ao esforço de construir uma economia voltada para o mercado interno, são a dificuldade real para a reversão de uma situação desfavorável. A derrota é anterior, extraparlamentar, num processo permanente e avassalador que atinge de frente aquele que é de longe o mais importante movimento político orgânico nascido no final da ditadura de 64, mas que agora se encontra sem músculos, sem voz e dividido, como se confirmou pela fraquíssima presença popular nos últimos protestos o afastamento da presidente.

A democracia brasileira, duramente construída na resistência ao regime militar, já foi derrotada, fora do Senado. A saída de Dilma pretende, apenas, dar aparência legal a uma situação de fato. Daí o pânico com a palavra golpe.

Neste mundo que se encontra além da política e sua lógica, além do Supremo Tribunal Federal e seus sorrisos amarelos, a resistência final a um golpe de notório, já escancarado, tornou-se uma questão de caráter.

É isso o que acontece em situações extremas e desiguais, muito difícil de enfrentar num absurdo universo fechado de personagens que só ouvem a si mesmos, em horas nas quais se usam as regras da democracia para destruir a própria democracia e se pronunciam argumentos morais para acobertar um infinito cinismo.

Quando as instituições falham, resta o caráter, ensinou o professor Wanderley Guilherme dos Santos, numa de suas aulas únicas sobre as diversas crises brasileiras. Em dezembro de 2015, data em que  Michel Temer deu o braço, em público, para aliar-se a Eduardo Cunha e articular o impeachment que deveria salvar a pele de tantos, Wanderley escreveu:

“Quando as instituições falham, o caráter prevalece. Há quem nunca fraudou a lei por falta de oportunidade e há os que resistiram apesar dos convites das circunstâncias. Em crise, o caráter de cada um é desnudado. De vários políticos já conhecemos o material de que são feitos, uns de primeira, outros de segunda qualidade. Não há coletividade humana que escape ao vírus da safadeza. A esperança é que não se propague.”

Richard Sennet, um dos mais agudos estudiosos das sociedades contemporâneas, registrou numa obra seminal, “A Corrosão do Caráter” que vivemos um tempo de “capitalismo flexível”. Com isso o mestre se refere a um “ sistema que é muito mais do que uma variação sobre um velho tema.  Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as formas rígidas burocracia e também os males da rotina cega. “ Neste novo momento da evolução humana, distante do sistema em que a maioria possuía a proteção de leis trabalhistas e de um estado de bem-estar, pede-se agilidade e abertura “a mudanças de curto prazo,” continuamente favoráveis a riscos que dependem “cada vez menos de leis e procedimentos formais.”

Escritas já no prefácio da obra, estas palavras são um ponto de partida para se compreender o processo que pode levar nossa democracia ao despenhadeiro. Antes da flexibilização da exploração dos assalariados, dos programas que defendem o miserável e mesmo dão alguma garantia a classe média, é preciso flexibilizar a democracia. 

O objeto do estudo de Sennet, vale assinalar, são os trabalhadores precarizados pelo Estado mínimo, incapazes de assumir compromissos duradouros para organizar suas famílias, defender suas famílias e suas comunidades em função de um sistema de laços frouxos, que não oferece um horizonte de longo prazo e dificulta a escolha de “caminhos a seguir,”  pois é impossível saber quais riscos “serão compensados.”

Nos últimos dias de agosto de 2016, uma guerra política que terá consequências de primeira grandeza sobre o Brasil e várias gerações de brasileiros e brasileiras, mudou de natureza.

Os fatos agora estão aí, a frente de todos, desde a conspiração no TCU até a arquitetura de Eduardo Cunha na Câmara. O essencial: Dilma não poder ser condenada porque é inteiramente inocente das acusações que lhe foram feitas. Ao contrário do que diz a tese de irresponsabilidade fiscal,  mostrou-se  excessivamente responsável ao lidar com as contas do governo, lembrou Luiz Gonzaga Belluzzo. Não pode ser condenada por uma lei que não existia no momento em que os fatos ocorreram, repetiu José Eduardo Cardozo. Não pode ser vítima de regras que se aplicam em regimes parlamentaristas num país onde vigora o presidencialismo, sublinhou o constitucionalista Geraldo Prado. Nelson Barbosa calou os interlocutores com respostas claras e definitivas sobre assuntos variados. A lista poderia ser maior.

Elaborada como uma resposta necessária à consciência democrática dos brasileiros, que há muito tempo não aceitam qualquer mentira que lhe apresentam, aquilo que era um pretexto revela-se uma farsa. Deveria ser cancelada com um pedido de desculpas. Mas isso dificilmente irá ocorrer, por uma razão muito simples.

Pessoas de caráter são aquelas que defendem princípios mesmo quando eles não convêm a seus próprios interesses. Não se contentam em brindar a democracia em coquetéis. Não saúdam a liberdade para impressionar jovens mocinhas. Não têm como primeiro mandamento ético ficar de bem com donos de jornal e com jornalistas.

São personagens como o empresário Rubens Paiva, o usineiro Teotonio Vilella, a quatrocentona Terezinha Zerbini, o arcebisco Paulo Evaristo Arns. Bustos de bronze na memória de 200 milhões de brasileiros.

Os demais, cedo ou tarde, imploram para serem esquecidos.


 

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