Quinta-feira, 31 de janeiro de 2013 - 17h59
Demétrio Magnoli,
O Globo
Lula sabe mais que os “intelectuais progressistas” reunidos em seu instituto para, nas palavras do assessor Luiz Dulci, “definir um plano de trabalho para o desenvolvimento e integração” da América Latina.
Há muito reduzidos à condição de intelectuais palacianos, os convidados celebraram os “avanços” na integração regional e a miraculosa clarividência do ex-presidente. O anfitrião, contudo, pediu-lhes algo diferente da bajulação habitual: a formulação de uma “doutrina” da integração latino-americana.
No décimo-primeiro ano de poder lulista, o pedido traz implícito o reconhecimento de um fracasso estrondoso de política externa — e da crise regional que se avizinha.
“Não tem explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar a primeira ponte entre Brasil e Bolívia; não tem explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar a primeira ponte entre Brasil e Peru”, proclamou o ex-presidente, sem ser corrigido por nenhum dos intelectuais que decoravam o ambiente.
O trem inaugural da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré chegou a Guajará-Mirim em abril de 1912.
Os presidentes Café Filho e Paz Estenssoro inauguraram a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia em Santa Cruz de La Sierra, em janeiro de 1955.
A Ponte da Amizade, sobre o Rio Paraná, uma ousada obra de engenharia, foi inaugurada em 1965, conectando o Paraguai às rodovias brasileiras e ao porto de Paranaguá.
As pontes que Lula inaugurou estavam previstas na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), aprovada na conferência de chefes de Estado de Brasília, em 2000, no governo FHC.
De lá para cá, sob o lulismo, integração regional converteu-se em eufemismo para alianças políticas entre governantes “progressistas”.
Desde 2003, com a nomeação de Marco Aurélio Garcia como assessor especial da Presidência, a política brasileira para a América Latina foi transferida da alçada do Itamaraty para a do lulopetismo, impregnando-se de reminiscências políticas antiamericanas, terceiro-mundistas e castristas.
O coquetel conduziu-nos ao impasse atual, que Lula é capaz de identificar mesmo se tenta disfarçá-lo pelo recurso à bazófia autocongratulatória.
A “Doutrina Garcia” rejeita a ideia de livre comércio, que funcionou como pilar original do Mercosul. A Argentina dos Kirchner aproveitou-se disso para violar sistematicamente as regras do Mercosul, desmontando o edifício da zona de livre comércio.
No seu instituto, Lula denunciou a “preocupação maior de relação preferencial com os EUA ou com a Europa ou com qualquer um, menos entre nós mesmos”. Entretanto, na celebrada última década, a América Latina não aprofundou o comércio intrarregional, limitando-se a estabelecer uma “relação preferencial” com a China, que absorve nossas exportações de commodities.
O primitivismo ideológico impede até mesmo a conclusão de um tratado comercial Brasil-México, elemento indispensável em qualquer projeto de integração latino-americana.
A “Doutrina Garcia” acalenta a utopia de uma integração impulsionada por investimentos estatais e de grandes empresas financiadas por recursos públicos.
Contudo, a estratégia de expansão regional do “capitalismo de estado” brasileiro esbarrou nas resistências nacionalistas de argentinos, bolivianos e equatorianos, que assestaram sucessivos golpes em negócios conduzidos pela Petrobras e por construtoras beneficiadas por empréstimos privilegiados do BNDES.
Numa dessas amargas ironias da história, o espectro do “imperialismo brasileiro” reemergiu como acusação dirigida por líderes latino-americanos “progressistas” contra o governo “progressista” de Lula.
A “Doutrina Garcia” almeja promover a liderança regional do Brasil, preservar o regime autoritário cubano e erguer uma barreira geopolítica entre América Latina e EUA.
Em busca da primeira meta, o Brasil colidiu com as pretensões concorrentes da Venezuela de Hugo Chávez, que criou a Aliança Bolivariana das Américas (Alba). A concorrência entre o lulopetismo e o chavismo paralisa a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), esvaziando de conteúdo suas reuniões de cúpula.
Em busca das outras duas metas, que compartilha com o chavismo, o Brasil ajudou a converter a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) numa ferramenta de proteção da ditadura castrista e de desmoralização da Carta Democrática da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Dias atrás, Cristina Kirchner definiu a ascensão de Cuba à presidência rotativa da Celac como o marco de “uma nova época na América Latina”. Ela tem razão: é o fim da curta época na qual os Estados da região levaram a sério seus proclamados compromissos com os direitos humanos e as liberdades públicas.
Distraídos, os intelectuais palacianos nada perceberam, mas a falência da “Doutrina Garcia” foi registrada no radar de Lula.
De um lado, abaixo do celofane brilhante da Unasul e da Celac, desenvolve-se um processo que deveria ser batizado como a desintegração da América Latina. A principal evidência disso encontra-se na emergência da Aliança do Pacífico, uma área de livre comércio formada sem alarido por México, Colômbia, Chile e Peru, aos quais podem se juntar o Panamá e outros países centro-americanos.
De outro, lenta mas inexoravelmente, desmorona a ordem castrista em Cuba, aproxima-se uma incerta transição na Venezuela chavista e dissolve-se o consenso político kirchnerista na Argentina.
Quando clama por uma nova “doutrina” da integração latino-americana, o ex-presidente revela aguda consciência da encruzilhada em que se colocou a política externa brasileira.
A consciência de um problema é condição necessária, mas não suficiente, para formular suas possíveis soluções. Lula e seu cortejo de intelectuais não encontrarão uma “doutrina” substituta sem lançar ao mar o lastro de anacronismos ideológicos do lulopetismo. Isso, porém, eles não farão.
Demétrio Magnolié sociólogo
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