Segunda-feira, 20 de novembro de 2017 - 10h37
Mais pobres entre os pobres, mais calados entre os silenciados, nossos afro-descentes voltam as ruas, nesta segunda-feira, para festejar a Consciência Negra. Num país onde a mobilização contra o racismo ganhou um elemento explosivo a partir do escandaloso "Coisa de Preto" de Willian Waack, que escancarou a hipocrisia da democracia racial na TV Globo, sua principal fortaleza ideológica, espera-se uma das mais amplas mobilizações em comemorações que envolvem o destino de 54% da população brasileira.
"Nosso movimento sempre dependeu da elite das comunicações para pautar o racismo no conjunto da sociedade" afirma Douglas Belchior, o Negro Belchior, em entrevista ao 247, referindo-se a importância do "Coisa de Preto" como elemento importante na mobilização em 2017. Para Belchior, a reação popular exibida no caso "demonstra a potência do racismo no debate político do país". Foi neste período, iniciado há 14 anos, que se consolidou uma mudança cultural em profundidade. Num dado que reflete uma politização crescente, na última década e meia a população negra abandonou de vez a referência à princesa Izabel e à Lei Áurea, que sempre teve um caráter ambíguo e desmobilizador, em benefício da mensagem combativa de Zumbi dos Palmares.
"Há muito tempo eu não via tanta animação com uma data já histórica", diz Flavio Carrança, da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial, de São Paulo e veterano das lutas contra o racismo. O esforço para realizar uma mobilização a altura do momento atual incluiu uma novidade: a produção de vídeos com personalidades e lideranças do movimento, como os cantores Seo Jorge e Criolo, o ator Ailton Graça, além do próprio Negro Belchior. Para completar, este 20 de novembro contará ainda com um fator político recente, que é a mobilização das mulheres negras, uma força particular que em 2015 reuniu 50 000 pessoas num protesto pela Esplanada do Ministérios, e desde então oferece demonstrações consecutivas de uma força própria e importante na luta por direitos. "A gente continuou colocando a marcha na rua", disse Juliana Gonçalves lembrando as sucessivas mobilizações específicas, de mulheres negras, que se ampliaram a partir daí, em depoimento a Agência Brasil. "A organização que se formou para ir a Brasília continuou ativa", diz ela.
Em novembro de 2017 o "Coisa de Preto" tem sua importância como episódio em si e como parte de uma conjuntura maior. No plano histórico, a frase de William Waack recorda a persistência de um comportamento registrado uma passagem de Gilberto Freyre que, mesmo sendo um dos patrocinadores da noção de democracia racial, demonstrou honestidade intelectual para admitir, na página 370 de Casa Grande & Senzala, um componente de violência em relações de dominação e entre brancos e negros. Numa citação que já recordei outras vezes neste espaço, Gilberto Freyre utiliza um trecho do mais conhecido romance de Machado de Assis para afirmar: “Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo nascido e criado depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadeza e no gosto de judiar com o negro. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com o animais é bem nosso: é de todo menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata.”
Naquele livro de 1933 -- o ano da ascensão de Hitler na Alemanha -- Gilberto Freyre descreve o ódio de todo "brasileiro de classe mais elevada" em seu "mórbido deleite" de maltratar o negro, num fenômeno que o sociólogo Jessé Souza definiu como o dado fundamental das relações sociais brasileiras. Mesmo depois da Constituição de 1988, que define o racismo como crime inafiançável, as punições continuam raríssimas. Já o crime de "injuria racial", costuma ser punido com mais frequência. Essa acusação já atingiram o deputado (e presidenciável) Jair Bolsonaro, condenado a pagar uma multa de R$ 50 000 em função de termos repulsivos aos quilombolas que empregou durante uma palestras no clube A Hebraica.
O detalhe é que a maior parte dos condenados em primeira instância consegue reverter a sentença quando o caso é levado aos tribunais. Em 2014, quando a torcida do Grêmio passou um jogo inteiro berrando ofensas contra o goleiro Aranha, do Santos, a primeira decisão da Justiça Desportiva foi drástica: puniu o clube com sua exclusão do campeonato brasileiro. Mas cabia recurso e, numa segunda instância, a pena foi modificada. Em vez de expulso do campeonato, o clube gaúcho foi penalizado com a perda de 3 pontos. A medida teve o mesmo efeito prático e levou ao rebaixamento de divisão. No plano jurídico, contudo, foi, obviamente, um recuo.
Um levantamento da repórter Solange Azevedo sobre os casos ocorridos entre 2005 e 2006 mostra que apenas 39,3% das condenações obtidas em primeira instância são mantidas na etapa seguinte. Nas condenações entre 2007 e 2008, o desempenho foi ainda pior: apenas 29,7% foram mantidas. Em outra cena ocorrida nos estádios, em 2005 o argentino Desábato chegou a ficar preso em flagrante, durante dois dias, depois de xingar o craque Grafite, do São Paulo, de "macaco" e "negro de merda". Mas o processo demorou tanto para chegar a uma conclusão, na Justiça, que o próprio Grafite abandonou o caso no meio do caminho, inconformado com uma segunda humilhação -- agora, pelo cidadão abandonado pela Justiça.
Um desempenho parecido se verifica na Justiça trabalhista, onde as empresas costumam levar a melhor em 58,5% dos casos examinados no mesmo período -- estamos falando, aqui, de um espaço no qual os assalariados tem, por tradição, um ambiente mais favorável. Mesmo quando se recorda que cada caso judicial deve ser examinado individualmente, com seus elementos e contradições, o estudioso Marcelo Paixão aponta para um fator subjetivo: “Juízes conservadores têm dificuldade de lidar com esses delitos e, às vezes, desqualificam a fala das vítimas”, diz Marcelo Paixão. “O mito da democracia racial, de que não existiria racismo no Brasil, também pode influenciar os magistrados”. (Istoé, 20/5/2011).
Outro aspecto do Dia Nacional da Consciência Negra diz respeito ao lugar particular da população afrodescendente no esforço da maioria dos brasileiros para conseguir uma sociedade mais próspera e menos desigual. Ocupando o patamar mais baixo em todos os aspectos de nossa vida social e econômica, seja no mundo do trabalho, seja nos direitos e no acesso aos serviços públicos, a população negra é uma espécie de alavanca da nação. Pelo seu peso na sociedade brasileira -- 54% da população -- tanto eleva o país sempre que consegue uma melhoria em sua condição como acaba jogando o conjunto para baixo sempre que sua situação é agravada. Douglas Belchior aponta: "É bom entender esse ponto: como se encontra na posição mais miserável da sociedade, a população negra puxa o país inteiro para cima quando consegue progredir".
Essa posição explicar o valor e peso da população negra na resistência à política econômica Temer-Meirelles. Entre 2003 e 2015, as medidas destinadas a atender a população do patamar inferior da pirâmide -- como o Bolsa Família, a elevação do salário mínimo, a prioridade na defesa do emprego e renda, as cotas para ingresso nas universidades -- tiveram um impacto inegável entre os afrodescendentes e a partir daí irradiaram benefícios para o país inteiro. Mais tarde, quando os mesmo investimentos foram reduzidos e teve início o desmanche absoluto de direitos e garantias após o golpe Temer-Meirelles, fez-se um movimento contrário. Mesmo instituições essenciais do Estado e único refúgio da população mais pobre -- como o SUS -- foram colocadas sob ataque. As leis trabalhistas foram extintas. A visão de um país voltado para o desenvolvimento foi substituída por programas de arrocho batizados de austeridade. Não é apenas por simbolismo que o combate ao trabalho escravo -- alvo primeiro da resistência de séculos da população escravizada -- foi enfraquecido. A mensagem é essa mesmo e é bom refletir sobre ela no dia em que o país presta homenagem a luta de Zumbi dos Palmares.
Abaixo, vídeo de Zito Araújo sobre a consciência negra.
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