Quinta-feira, 19 de setembro de 2013 - 14h40
Por Reginaldo Trindade[1]
Quarta-feira, 14 de agosto, dia singular.
Há um mês era realizado, em Ji-Paraná, Rondônia, Brasil, o primeiro julgamento popular da Justiça Federal existente naquela localidade.
No banco dos réus, um índio Cinta Larga e dois não índios, ou, se preferirem, para usar uma expressão mais comum e consagrada, dois brancos.
A acusação, tentativa de morte de um advogado de uma cidade próxima (Cacoal/RO).
O crime aconteceu no primeiro semestre de 2007, época terrivelmente turbulenta para a comunidade Cinta Larga.
Na ocasião, estava presa, além do acusado desse homicídio tentado, uma importante liderança indígena do povo, por supostamente ter cometido um crime pelo qual, provavelmente, ninguém fique atrás das grades neste país: posse de alguns cartuchos de espingarda de caça.
Não havia, naquele tempo, qualquer procurador da Funai que pudesse, de forma expedita, formular o pedido de liberdade provisória. Resultado, o Ministério Público Federal teve que fazê-lo.
Mesmo assim, esta importante liderança permaneceu muitas semanas trancafiada por conta dessa acusação e, o que é mais grave, em vários desses dias a prisão foi mantida mesmo com a ordem judicial para soltura já emitida.
Não só não havia um procurador da Funai para redigir o pedido, como sequer existia um servidor do órgão indigenista, com um mínimo de diligência e discernimento, que pudesse recolher a fiança arbitrada (cujo valor os índios rapidamente levantaram) e executar, concretamente, a ordem de liberdade.
A assistência judiciária concedida pelo Estado brasileiro ao Povo Cinta Larga está, assim, nesse nível elementar, subumano.
A desassistência, identificada pelo MPF, levou a Instituição a adotar várias providências, como a expedição de recomendação e até mesmo uma ação judicial; mas, até hoje não há nenhuma garantia efetiva de permanência de um procurador da Funai para defender os índios e dar-lhes todas as orientações jurídicas em Cacoal/RO.
O trabalho tem ficado, então, ao sabor da boa vontade, sensibilidade e talento de alguns valentes procuradores da Funai que passam por lá.
O quadro, pintado em cores vivas, à custa do sangue de todo um povo, torna difícil acreditar que existe um mandamento constitucional que garante que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; mesmo que sejam índios.
Mas, voltemos ao julgamento popular ocorrido na Justiça Federal em Ji-Paraná.
Em 2007, logo após a tentativa de assassinato do advogado em Cacoal, o então presidente da Subseção da OAB daquela cidade, empreendeu, como a posição lhe exigia, uma verdadeira cruzada para descobrir a verdade no caso. Pairava uma suspeita no ar de que mais índios Cinta Larga pudessem estar envolvidos.
Esse contexto, aliado ao histórico de preconceito “natural” que assola o Povo Cinta Larga na região, bastou para gerar um clima de “guerra declarada aos índios”. A possibilidade de arrebatamento do Cinta Larga preso era real e iminente.
O barril de pólvora ficou ainda mais explosivo quando o próprio presidente da subseção da OAB foi assassinado dias depois. Crime bárbaro e terrível.
A associação, feita pela sociedade branca, foi imediata: o culpado era o Povo Cinta Larga. Os ânimos para linchar o índio preso aumentaram.
Alguns anos depois se descobriu que a morte daquele combativo advogado teria sido obra de sua própria esposa. O Povo Cinta Larga nada tinha a ver com tão hediondo acontecimento. Só a verdade liberta.
Voltando, uma vez mais, ao júri de um mês atrás, o caso em si mesmo é prova viva da assistência judiciária, ou melhor, da desassistência extrema a que os índios estão relegados.
Como não havia procurador da Funai, outra vez o MPF teve que entrar em cena, em conjunto com o Ministério Público estadual, para que deslocasse a causa para o foro federal e, principalmente, retirasse o índio de Cacoal/RO, evitando o linchamento popular.
A desassistência, no entanto, pode ser mesmo medida tendo em conta o tempo de prisão provisória: enquanto os dois brancos ficaram presos por cerca de um ano e seis meses, o índio permaneceu enclausurado por longos quatro anos e nove meses!
E aqui não vai nenhum demérito à atuação de advogados, defensores públicos e procuradores da Funai que trabalharam na defesa do índio. De modo algum. Tanto é assim que conseguiram a absolvição do indígena, enquanto que os brancos foram condenados.
O problema mesmo, caríssimo leitor, está no sistema de proteção e assistência judiciária aos índios. Valores tão relevantes como a liberdade e a dignidade da pessoa humana não podem ficar ao sabor de talentos e sensibilidades individuais. Tem que haver vontade política efetiva para fazer valer os mais elementares direitos dos índios.
A causa só foi para a Justiça Federal porque havia um contexto subjacente de dívidas contraídas por índios. Aliás, nessas dívidas também se constata o quão abandonado à própria sorte está o Povo Cinta Larga: há dívidas extorsivas, dívidas indevidas, dívidas provenientes de notas promissórias assinadas em branco e preenchidas ao “sabor” (e da falta de escrúpulos) do freguês etc.
Se o Governo não cuidar adequadamente, como a Constituição lhe impõe, desse assunto, não tardará e o Povo Cinta Larga, que está no banco dos réus, passará ao rol dos culpados, sentenciado pela inércia, incompetência, descaso e omissão.
E por falar em banco dos réus, há alguns dias o Macaco Simão, que escreve para a Folha de São Paulo e outros jornais do país, disse, aludindo à quantidade de réus do “Mensalão”, que aquilo estava mais para “arquibancada dos réus” (um banco só não daria conta...). O Povo Cinta Larga compõem-se de cerca de dois mil índios, muito mais do que os quarenta réus do mais célebre processo judicial do país. Será necessária, então, uma arquibancada “padrão FIFA” para dar conta de tanto índio condenado à indiferença estatal.
[1] Procurador da República. Responsável, no Estado de Rondônia, pela Defesa do Povo Cinta Larga. Especialista em Direito Constitucional.
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