Sexta-feira, 28 de janeiro de 2011 - 06h05
João Baptista Herkenhoff
Sem sombra de dúvida, escolhi um título solene para este artigo. Mas como não estou escrevendo apenas para juristas, devo começar dizendo o que é hermenêutica.
Esta indagação inaugural remete-me ao passado, justamente quando dei em Vitória um curso de Hermenêutica Jurídica.
Um vizinho inteligente e curioso, no edifício onde morávamos, ao lado da Catedral, na Cidade Alta, em Vitória, toca bem cedo a campainha do nosso apartamento e me pergunta sem qualquer preâmbulo: o que é hermenêutica?
A pergunta assim direta, sem rodeios, me assusta, porém me provoca.
Expliquei: Hermenêutica é a ciência e a arte da interpretação em geral. Hermenêutica Jurídica é a ciência e a arte da interpretação das leis.
Ser questionado é muito interessante. As perguntas são a chave do saber.
Um homem inteligente, que aprendeu a pensar, na luta da vida e não na universidade, colocou-me uma questão muito séria dias atrás. Com a lógica dos indivíduos objetivos, diretos no raciocínio, ele me interpelou:
"por que juízes e advogados não fazem valer as leis existentes no país?"
E completou:
"parece-me que temos uma Constituição muito bonita, cheia de artigos importantes, mas nada é cumprido."
Acho que tem razão este amigo no seu "discurso de senso comum".
Os preceitos constitucionais, por exemplo, devem impregnar todo o ordenamento jurídico. Devem dar o "norte" na interpretação dos diversos ramos do Direito. Têm valor por si só, independentemente de regulamentação, sempre que for possível extrair deles um comando racional.
Isto acontece não apenas pela precedência, isto é, pela supremacia da Constituição. Também por força de um princípio de interpretação sociológica. Constituição votada, com forte participação popular, sensível a algumas aspirações contemporâneas da sociedade brasileira, seu espírito deve "encarnar" no conjunto da interpretação e aplicação do Direito que se produza no país, neste momento.
Nesta linha de reflexão, não me parecem vazios ou retóricos certos preceitos constitucionais, como se diz às vezes que são, à falta de determinações concretas, objetivas, palpáveis.
Neste caso está o art. 193, que abre o título "Da ordem social", na Constituição brasileira.
Diz o artigo:
"A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivos o bem-estar e a justiça sociais."
Este não é um preceito nulo, é um preceito afirmativo: o primado do trabalho é a base da ordem social; o bem-estar e a justiça social são o fim dessa mesma ordem.
Quem edifica essa ordem são todas as forças integrantes da sociedade, inclusive os juristas - advogados, procuradores, juízes.
Cumpre construir o edifício jurídico à luz de princípios como esse que está expresso no artigo 193.
Para as forças interessadas na manutenção de seus privilégios, é bem cômodo dizer que princípios como o do art. 193 são princípios programáticos. Em outras palavras: não teriam efeito real.
Ora, nem mesmo à luz de uma simples interpretação baseada na letra da lei poderíamos chegar a uma tal conclusão.
Como pode ser princípio programático um artigo constitucional que coloca o verbo no presente do indicativo e diz que "a ordem social tem como base o primado do trabalho"?
O que cabe é interpretar e aplicar as leis com a iluminação de princípios como o que estamos examinando. Se a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais, todas as leis devem ser interpretadas e aplicadas sob essa diretriz.
As leis constituem instrumento da ordem social. O instrumento não pode trair o projeto global. Se o projeto é a ordem social fundada no primado do trabalho e orientada para o bem-estar e a justiça social, qualquer lei que traia esse objetivo, que fraude esse projeto é inconstitucional.
A meu ver, servirão à causa do Direito advogados combativos e juízes corajosos que lutem pela hegemonia de princípios constitucionais arrancados, a duras penas, nas refregas da Constituinte. A prevalência desses princípios encontra obstáculo nos espíritos conservadores que teimam em acolher uma linha de interpretação jurídica estreita, excludente, secularmente legitimadora de privilégios.
Poderão redarguir: esta proposta significa uma hermenêutica de combate, uma postura política incompatível com a serenidade própria ao cientista do Direito.
A meu ver essa objeção esconde, ou um grave equívoco, ou uma deslavada hipocrisia.
Que exegese, isto é, que interpretação não é política? Que ato humano não é político?
Que serenidade é essa do cientista do Direito?
A serenidade dos gabinetes executivos, do chá das cinco com torradas, em ambiente de ar refrigerado?
Ou a serenidade histórica do cientista do Direito capaz de ouvir o grito de Justiça do povo, conduzido para o trabalho em caminhões apinhados, nas primeiras horas da manhã?
Creio que a serenidade histórica, construtiva, progressista é a que esperam dos juristas os homens de bom senso.
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