Segunda-feira, 31 de março de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Opinião

Os carrascos também morrem


                      Guido Bilharinho

                   Em maio de 1942, em Praga, antiga Checo-Eslováquia, foi assassinado o reichsprotektor, Reinhard Heydrich, imposto ao país pela invasão e ocupação procedidas pela Alemanha nazista.

                   As consequências desse atentado constituem o assunto do filme Os Carrascos Também Morrem (Hangmen Also Die, EE.UU., 1943), do austríaco Fritz Lang (1890-1976). Ou seja, o incidente nem estava assimilado e esclarecido, nem interna e muito menos externamente, e já se transformara em tema fílmico do outro lado do Atlântico.

                   Por se tratar de ocorrência histórica, o compromisso do cineasta não se restringe aos aspectos humanos e estéticos da realização. Além deles, e concomitantemente com eles, incide a fidelidade aos fatos. Por infringência a esses requisitos, quase todos, para não se dizer todos, os filmes “históricos” de qualquer procedência só o são parcialmente.

                   As necessidades e injunções da narrativa ficcional e, principalmente, de tornar o filme palatável ao espectador, além, evidentemente, do maior ou menor conhecimento da verdade histórica, imprimem seu selo à realização.

                   No primeiro caso, agregam-se aos episódios, construindo-lhes em torno ou mesmo, o que é pior e mais grave, em seus núcleos, dramas pessoais de personagens fictícias e mesmo históricas, de modo a estruturar enredo meramente convencional.

                   Na segunda hipótese, nessa operação costuma-se desvirtuar a realidade, deturpando a veracidade histórica para submetê-la às exigências da narrativa segundo os usuais padrões cinematográficos a que o público está condicionado.   

                   Por fim, a fidedignidade aos fatos jaz soterrada sob o peso da conveniência mercadológica, não interessando, por isso, retratar com fidelidade a situação focalizada, da qual apenas se pesquisam e se divulgam os lineamentos gerais, o eixo central, por se tratar justamente do pretexto fílmico.

                   Ocorre no presente caso a impossibilidade de se saber como realmente o incidente se deu. Em plena guerra e no calor do sucedido ainda não se poderia conhecer seus pormenores e autores.

                   Em consequência, resulta da simultaneidade desses fatores, o aspecto fantasista do filme a respeito dos acontecimentos que o recheiam, sobrando para a verdade histórica apenas o atentado, o horror que os checos tinham de Heydrich, a surda oposição do povo à ocupação e a seus agentes, a ação do movimento checo de resistência, em cuja existência Himmler até então recusava-se a acreditar, conforme relata o historiador Alan Wykes, e, finalmente, a repressão que se lhe seguiu, que o filme apenas bordeja e que, na realidade, extrapola de muito o que ligeiramente revela.

                   Por sinal, Wykes obteve certa notoriedade à época porque em plena Segunda Guerra moveu, sem sucesso, companha para substituir a interpelação das sentinelas “quem vem lá?” por “quem vem cá?” (in Heydrich. Rio de Janeiro, editora Renes, 1977).

                   A fragilidade, incompletude e deturpação da verdade histórica são também responsáveis pelas limitações cinematográficas do filme.

                   Não seria para menos nem de outro modo, visto que Lang apenas objetivou narrar (dramatizando) o evento, subordinando e sacrificando, com isso, a linguagem cinematográfica e a fixação dos relacionamentos humanos, limitando-se a expô-los convencional e linearmente.

                   Ao cinema propriamente dito restaram competência e segurança direcional, apropriada construção tipológica de algumas personagens (notadamente nazistas, à exceção de Heydrich, apresentado como maníaco afeminado), eficaz direção e interpretação dos atores, lógica articulação dos fatos fílmicos (não dos reais), belos décors deinteriores e de aspectos urbanos e a criação da sufocante ambiência de submissão e terror estabelecida pelo nazismo.

                   Mesmo sendo relevantes esses predicados, não chegam, porém, a conferir ao filme o status artístico cinematográfico que alguns pretendem lhe outorgar.

                   Além de ilusório, o enredo apresenta discrepâncias.

                   Uma delas, a circunstância do tido (pelo filme) como autor da eliminação de Heydrich perambular ao léu pela cidade logo após o ato sem ter para onde ir, refugiando-se até mesmo em sessão de cinema e, depois, aleatoriamente, face ao toque de recolher, em residência alheia de desconhecidos.

                   Ora, se essa personagem é - no filme bem entendido – médico cirurgião de nomeada e com domicílio fixo, por que não se dirigiu a ele, prosseguindo normalmente sua rotina?

                   Outra, é a particularidade (fílmica) de que a Gestapo, conhecendo o movimento de resistência até em seus mínimos detalhes, visto ter nele informante, e sabendo-o responsável pelo atentado (o que não é real, eis que os quatro executores foram da Grã-Bretanha por avião), não o incomodou e, ao invés disso, que é verdade histórica, promoveu vasta investigação e perseguição, praticando criminosa represália de prisões e fuzilamentos diários.

                   Tais incoerências não o são em relação à realidade, que, no caso, é simplesmente ignorada, porém, decorrem internamente da própria trama fantasiosamente montada. Àquela, o filme contraria, à esta, fragiliza e compromete.

(do livro A Segunda Guerra no Cinema. Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2005)

______________________

Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensãode 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.

Gente de OpiniãoSegunda-feira, 31 de março de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

A rotina de uma cidade violenta

A rotina de uma cidade violenta

A situação da segurança pública em Porto Velho apresenta-se cada dia mais grave, apesar de a propaganda oficial querer-nos convencer de que vivemos

“As farmácias têm importante função social e podem apoiar na redução de atendimentos emergenciais em hospitais”, explica Cleiton de Castro Marques em debate

“As farmácias têm importante função social e podem apoiar na redução de atendimentos emergenciais em hospitais”, explica Cleiton de Castro Marques em debate

A Biolab, uma das maiores indústrias farmacêuticas do Brasil, marcou presença no Conexão Farma, iniciativa da Abradilan (Associação Brasileira de Di

Inflação desafia criatividade da equipe econômica do governo

Inflação desafia criatividade da equipe econômica do governo

A inflação vem desafiando a criatividade da equipe econômica do governo do presidente Lula. Na ausência de medidas econômicas consistentes e duradou

Pela aprovação da PEC nº 01/2025 que garante a correção anual dos repasses para educação, saúde e segurança pública do Distrito Federal

Pela aprovação da PEC nº 01/2025 que garante a correção anual dos repasses para educação, saúde e segurança pública do Distrito Federal

Quero louvar o nobre Senador da República e Homem Público, Izalcy Lucas (PL-DF), pela feliz iniciativa de ter apresentado aos seus pares no Senado Fed

Gente de Opinião Segunda-feira, 31 de março de 2025 | Porto Velho (RO)