Sábado, 31 de janeiro de 2015 - 05h04
Luiz Albuquerque
Saí de casa levando o par de sapatos para reformar. Por muito tempo deixei aquele par de sapatos no armário como uma relíquia, um troféu. Minha mulher chegou a pô-los no lixo e eu, por coincidência ou sorte, os encontrei. Salvei-os, e me rejubilei por isto como quem se rejubila por recuperar um tesouro. É difícil a outro entender o porquê de tantos cuidados com este velho par de sapatos. Mesmo para minha mulher eu nunca contei. Sei lá porquê? Talvez vergonha! Apenas pedi, aliás, determinei: aquele par de sapatos deveria ficar comigo enquanto eu vivesse. Com o passar do tempo simplesmente o deixei ficar ali, no armário, junto com tantos outros sapatos, quase todos pouco usados, uns até novos mesmo! Velho, só aquele par. Limpo, engraxado, mas desgastado, com o solado comido e o calço rebaixado pelo uso. Mas estes sapatos vão estar sempre comigo. Hoje vou contar o motivo. Depois de contar, espero que minha esposa passe a vê-los como eu os vejo: uma coisa que mudou totalmente a minha vida, sem o qual possivelmente hoje eu não teria nada do que possuo. Foi assim: Uns quinze anos atrás eu não tinha nada. Aliás, tinha a minha vida, mas achava que não valia nada. Vivia na rua, era guardador de carros, flanelinha, sei lá. Dormia na rua. De dia até a madrugada fingia guardar os carros dos outros. Mal o cara encostava o carro eu já perguntava se podia tomar conta. Uns diziam que sim, outros que não. Eu ficava olhando de longe, quase sempre com uma garrafa de “pinga” ao lado. Muitas vezes o que eu ganhava não dava pra comprar comida e cachaça, então eu escolhia comprar a pinga. A comida, sempre conseguia com alguém que pagasse ou cedesse um pouco para mim. Era tudo uma porcaria. Recebia umas moedinhas que, no fim, mal davam para comprar nada. Mas era minha vida, a que eu conhecia, depois de me criar na rua, sem estudo, saído de um reformatório. Não pensava em nada. Futuro, família, nada!
Até o dia quando encontrei o par de sapatos. Esquecidos, num banco de praça. Abri a caixa, estavam lá! Novos. Brilhantes. Cheirosos. Olhei em volta. Ninguém! Saí dali, corri para meu lugar de costume. Ia colocá-los nos pés mas... tive dó! Eles eram tão limpos, tão novos! E meus pés, sujos. Fui até uma torneira onde bebia água, lavei bem os pés. Calcei-os. Certinhos! Não sobrava, não faltava, não apertava, nada! Macios, gostosos, diferentes. Eu nunca havia calçado um sapato novo. Não! Não podia usá-los com os trapos que vestia. Procurei um lugar seguro onde guardá-los e resolvi: Ia conseguir roupas melhores para combinar com os sapatos. Passei a trabalhar mais e a não gastar com besteira, nem mesmo bebidas. Sem beber, sobrava mais tempo para trabalhar, já que antes enchia a cara e dormia na maior parte do tempo. Trabalhei, ganhei uma calça, comprei camisa e meias. E aí, num domingo, finalmente vestido e limpo, calcei os sapatos. Os sapatos! Era como voar! Era como se todos olhassem para mim, admirando meus sapatos! Um sonho! No outro dia fui guardar carros vestindo roupas novas. Aos poucos, com os dias passando, a renda melhorou. Passaram-se meses. Fui comprando outras roupas. Um dia aluguei um quarto. Era o primeiro local “MEU”. Comprei uma gravata e passei a usá-la no trabalho. Eu era requisitado por muitos motoristas, ganhava gorjetas maiores que os outros guardadores. Juntei dinheiro. Certo dia o dono de um estacionamento me convidou para trabalhar com ele. Fui! Passados anos, eu já era gerente daquele e de outros seis estacionamentos. Com a morte do proprietário, a viúva viu que não conseguiria tocar o negócio e me propôs sociedade. Aceitei. Depois, comprei os estacionamentos. Aos poucos, aumentei o empreendimento e abri negócios em outros ramos. Quinze anos depois estou aqui, levando os velhos sapatos. Eles são minha vida! Vou reformá-los. Vão ficar como novos!
Luiz Albuquerque (Manaus/AM), EM Porto Velho desde 1979. É consultor comercial, escritor e editou o projeto “Leitura no Ônibus”
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E-mail: lccalbuquerque@gmail.com
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