Domingo, 17 de setembro de 2017 - 12h13
Por João Paulo Cunha, no Brasil de Fato
A recente passagem dos furacões Harvey e Irma pelo Caribe e parte dos EUA deixou, além do rastro de destruição, algumas verdades dolorosas. Além de um evento natural, o que se acompanhou foi uma narrativa fortemente ideológica, construída a partir de uma perspectiva centralizadora, marcada pelo discurso emocional. Além disso, em nenhum momento foi feita qualquer contextualização que apontasse a responsabilidade política dos países que renegam a importância da questão climática na proporção tomada pelas tempestades.
São várias questões envolvidas nessa aparente naturalidade da catástrofe. A primeira é a diferença que existe na geopolítica contemporânea e na mídia internacional (o Brasil incluído) entre o valor da vida entre diferentes povos e nações. O que ocorreu antes dos furacões chegarem aos EUA – já extirpados de parte de sua força destruidora num genérico território sem identidade, chamado de “ilhas do Caribe” – , parecia apenas ensaio para o evento esperado para os Estados Unidos. Mesmo as cenas de casas destruídas e desabrigados eram apresentadas como um estágio para o que de fato importaria: a consequência do Irma em Miami e região.
Não se acompanhou o trabalho de correspondentes em Cuba, República Dominicana, Haiti, Barbuda, Ilhas Virgens, São Bartolomeu, Porto Rico, São Martinho e outras localidades. Bastavam as imagens, que compunham uma prévia para mostrar como os EUA se preparavam para enfrentar o mesmo problema dias depois. Como cobaias, os mortos do Caribe foram dados como números. Já a cobertura na Flórida e em outras localidades americanas seguiu o padrão do jornalismo-catástrofe de inspiração hollywoodiana, com muitas histórias pessoais, cenas de retirada em massa, corridas aos supermercados e falas de autoridades. Com centenas de enviados especiais buscando sua fatia de audiência em exibições patéticas de temeridade.
O segundo tema que merece reflexão é a denegação da responsabilidade americana na tragédia. O consenso que se instalou entre especialistas, depois da passagem do Irma, deixou claro que a dimensão do fenômeno tem relação inequívoca com o aquecimento global e a difícil aprovação de medidas internacionais em torno da questão climática. Os negacionistas, Trump à frente, não foram chamados à responsabilidade. As próprias cenas de retirada de moradores das áreas mais ameaçadas, com milhares de carros se deslocando com lentidão, estampava sem metáfora a economia baseada na queima de combustível.
Num ciclo vicioso muito infeliz, parecia que todo o processo se desenrolava aos olhos da consciência humana: o desperdício, a irresponsabilidade, a negação presunçosa da realidade científica, a fuga e o encontro, como nas tragédias gregas, com a morte antecipada pela consciência dos próprios erros. Como Édipo em fuga ao destino revelado pela esfinge, o americano médio se afastava da cidade mais consumista do país para ir de encontro a outra forma de aniquilamento. As primeiras vítimas do furacão Irma no país perderam a vida em acidentes de trânsito.
Capitalismo de desastre
Outro aspecto que merece atenção é a forma como toda essa tragédia faz parte de um novo modelo de capitalismo, que a jornalista canadense Naomi Klein chamou no livro “A doutrina do Choque”, de 2007, de “capitalismo de desastre”. Ela argumenta em seu trabalho que há uma conexão profunda entre a economia atual e as ditaduras, massacres, desastres naturais, guerras e ameaças de terrorismo. De acordo com Naomi Klein, o medo que emerge desses episódios (naturais ou produzidos pela mão do homem) fundamenta a doutrina do choque, que estimula as pessoas a aceitarem medidas extremas por parte dos Estados nacionais, como sendo uma reação para seu próprio bem, e não uma decisão economicamente interessada.
Não é um acaso que depois de eventos como o furacão Katrina, também nos EUA, a educação tenha sido reformulada em direção à privatização das escolas públicas da região. A oportunidade de negócios em áreas de conflito explica porque alguns países interessam e outros são abandonados à própria sorte. A posse de reservas energéticas e minerais e as posições geopolíticas estratégicas, inclusive de domínio de tecnologia nuclear, têm sido diferenciais na atenção “humanitária” e na defesa “democrática” por parte das economias centrais. Se o sistema não produz tragédias naturais diretamente, sabe muito bem como aproveitar-se delas para estimular sua pauta de negócios.
A análise de Klein, atualmente, avança até o novo cenário internacional, no qual as corporações transnacionais se tornaram parceiras dependentes dos estados. Essa situação gerou o abandono de políticas públicas, a fragilização dos direitos e a desregulamentação dos mercados. O dinheiro transita entre oportunidades apresentadas muitas vezes pelos sinais inequívocos do fracasso do capitalismo em dar conta da complexidade dos problemas que ele mesmo gerou. Nem mesmo a ciência escapou. Mesmo valorizada em sua dimensão de conhecimento, ela hoje perdeu o protagonismo das decisões, com a retirada da regulação e do investimento público.
Não se alterará o ritmo de destruição da natureza, inclusive com risco de uma catástrofe climática global, sem aumentar impostos dos ricos para financiar novos modelos mais igualitários, sem mudança do padrão de consumo, da matriz energética e das estruturas de desigualdade social. A mística do mercado perfeito e do Estado mínimo aponta inevitavelmente para o caos. O setor privado já bateu no fundo de sua irresponsabilidade civilizatória; a dimensão pública ainda não assumiu a radicalidade de seu compromisso. Quando Trump, por exemplo, nega o aquecimento global, não se trata apenas de burrice, mas de um projeto.
Maus tempos no Brasil
No Brasil, a se considerar o governo ilegítimo de Michel Temer como um exemplo acabado de catástrofe, é possível perceber a vigência da doutrina do choque entre nós. A transformação dos nossos desastres políticos em oportunidades de negócios explica a sanha em facilitar a exploração mineral em áreas de preservação. Em acabar com reservas indígenas e quilombolas, como pode indicar a aprovação da PEC 215. Em destruir a ciência e tecnologia com a retirada de recursos dos centros de pesquisa. Em entregar o pré-sal às empresas internacionais.
E mais: em propor a criação de planos de saúde populares para ferir de morte o SUS e incentivar o mercado com alta inversão tecnológica. Em enfraquecer os instrumentos de financiamento voltados para o desenvolvimento para favorecer o mercado financeiro. Em sucatear as universidades públicas para cevar o negócio da educação privada com seu imediatismo sem projeto. Em estacar as políticas culturais, deixando o setor ao sabor do entretenimento e das pressões reacionárias e contra a diversidade.
Temos muitos furacões a enfrentar.
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