Quarta-feira, 1 de novembro de 2023 - 15h34
Comovente depoimento do designer gráfico
Thiago Berardi, em bem elaborado vídeo que circula nas redes. Ele condena o
STF, onde considera não haver vida inteligente, por “permitir o aborto até a
12ª semana de gestação”. Pena que, preocupado em fortalecer a argumentação,
ignore o fato da votação ter sido suspensa após um único voto favorável, da
então relatora, a agora ex-ministra Rosa Weber.
A
manifestação, presumivelmente em defesa do
direito à vida, mostra, no entanto, apenas a exploração eleitoreiro-religiosa
de uma questão que se arrasta desde 1940. E o caminho da solução com certeza
não passa por manifestações assim “inteligentes”. Afinal, “Para todo
problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente
errada” – advertia. Henry Louis Mencken, autor de “TheAmerican Language”
(1919).
A
verdade é que,
ao não tratar o assunto com a seriedade que a realidade exige, religiosos e
políticos compactuam com a permanente mortandade de mulheres – em geral jovens,
de baixa escolaridade, pretas e pobres, por todo o país. A abordagem faz
lembrar a defesa que muitos especialistas, dos mais brilhantes, ainda fazem da
que imaginam imprescindível adoção do nome correto – hanseníase – para uma
doença que ainda atinge números insuportavelmente elevados no país.
Segundo o Ministério da Saúde, foram
diagnosticados 17 mil novos casos em 2022. Ou seja: enquanto se busca a adoção
do nome correto, o povão, geralmente o mais humilde, sofre com a lepra, mesmo
havendo tratamento disponível no SUS. A exploração política do aborto, pauta de
costumes tão ao gosto do patrulhamento da direita, continua a mobilizar
seguidores. Mas o atual presidente do STF, ministro Luiz Roberto Barroso, que
tirou a pauta do plenário virtual, já anunciou que vai engavetar a questão pelo
menos até que os gregos resolvam adotar as tais calendas.
No
Brasil, cerca
de 800 mil mulheres praticam abortos todos os anos. Dessas, 200 mil recorrem ao
SUS para tratar as seqüelas de procedimentos malfeitos. Para a Organização
Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de
abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres. Há indicativos que apontam para
números assustadores: uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fez,
pelo menos, um aborto na vida.
É a
quinta maior causa de mortes maternas no país. Mas pouco importa a pessoas como
nosso bravo depoente, que usa a tragédia como palanque ideológico. Afinal,
embora é largamente praticado em todos os níveis da sociedade, morrem quase
exclusivamente as mulheres jovens pretas de tão pobres e pobres de tão pretas,
como salienta Caetano Veloso na magnífica canção Haiti!
O
tratamento dedicado ao tema é exclusivamente direcionado à preservação da vida do
feto, para
desconsiderar a outra parte da questão: a mulher gestante, cujos direitos são
abortados (eita!) na argumentação. Sempre ligado à
crônica policial brasileira, o aborto é também uma tragédia social, política e
econômica. Por trás da perda de vidas humanas, em geral jovens, escondem-se
lideranças que, covardemente, fogem do debate, dando a ele tratamento
demagógico ou de caráter religioso.
Cumpre
esclarecer que não
faço aqui qualquer defesa da interrupção da
gravidez, embora respeite o que está na lei. O que não se pode, porém, é
protelar indefinidamente a busca por uma maneira eficaz de, numa hipótese menos
favorável, evitar que, em vez de uma, ocorram duas mortes, quando uma mulher
decide não ter o filho em gestação.
Não
fosse assim, Thiago Berardi não se imaginaria
inteligente a ponto de esquecer uma realidade na qual a prática do aborto é
rotineira, independentemente do que estabelece (ou não) a legislação. Induzidos ou espontâneos, legais ou ilegais, os abortos
são uma tragédia nacional. A diferença é que as mulheres brancas e ricas
usam os serviços de clínicas luxuosas e caríssimas para procedimentos com
anestesia geral de apenas três minutos e retirada do feto por sucção a um custo
de quase R$ 10 mil em dinheiro. Pagamento adiantado, esclareça-se.
Enquanto
isso, as mulheres pobres entregam a
vida nas mãos de charlatães ou a toda espécie de chás e procedimentos abortivos
que, não raro, conduzem-nas às enfermarias lotadas dos hospitais públicos. O
problema existe. E vai muito além da exploração política irresponsável.É preciso enfrentá-lo com seriedade. Observar, inclusive,
o que se faz em outros países. Não há vergonha em copiar decisões acertadas.
Especialmente em favor da vida!
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