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Vinício Carrilho

A REPRODUÇÃO DE SI MESMO/A - sem singularidade ou subjetividade


A REPRODUÇÃO DE SI MESMO/A - sem singularidade ou subjetividade - Gente de Opinião

         Desconfio que, em março deste ano, recebi uma redação produzida por algum tipo de inteligência artificial. Minha desconfiança se deve ao fato de apresentar muito pouca inteligência social. Explico: era perfeita demais, mas sem nenhuma singularidade, sem nenhum notável erro e acerto, ou seja, era desumana demais em todos os sentidos, especialmente no sentido primordial, o de errarmos e acertamos como seres humanos. É nítido, neste caso, que existam apenas “acertos programados”.

Outro aspecto que chama a atenção de qualquer leitor/a deriva do fato de ser, perfeita em demasia, limpa, insípida, incolor. Ou seja, a singularidade é zero, uma vez que somos sempre uma coleção de erros e de acertos – não importa quem colecione mais, um ou outro ponto da aritmética humana.

         Também me lembrou Benjamin e o Daguerreótipo, o aparelho que “simulou” embrionariamente a fotografia – com ou sem aura. No caso do aparelho também desconfio que havia alma, porque retinha todas as intenções do inventor: até a retina de Dom Pedro II esteve por ali.

Em síntese apressada, é o que a boa e clássica sociologia chama de subjetividade – o que nos torna singulares, como seres únicos (independentemente de sermos clonados) –, porque o que nos torna humanos é tudo o que vem depois da precisão dos “códigos genéticos” ou robóticos. Isto é, somos uma coleção ambulante de erros e de acertos: um tipo social composto por uma não-replicável “metamorfose ambulante”, como queria Raul Seixas.

         Outro motivo da minha desconfiança remete ao ritmo da redação aspirante à perfeição inabalável: o Positivismo reprodutivista. Esteve impressa o tempo todo sua aspiração, no sentido de buscar uma fotografia exata, perfeita, imutável, do que se propôs a retratar – para piorar, a tal redação imutável resumia alguns dos artigos desta pessoa que lhes escreve. Então, eu sei o que escrevi. Porém, não tenho a menor ideia do que a inteligência artificial e seu executor/a pensam a respeito do que “eles” escreveram sobre mim. É uma decepção total para quem lê e para quem se atreve a escrever com singularidade, como estou tentando fazer agora.

         Minha breve conclusão ainda me leva a pensar outros pontos: inventor e escritor andam lado a lado. Alguns inventam engenhocas (tecnológicas ou sociais) e outros inventam significados e sentidos para as palavras, isto é, revelam partes de sua subjetividade.

Desse modo, nenhuma inteligência artificial ou Positivismo reprodutivista (que também reputo meio desprovido de sinapse social) conseguirá replicar o que somos de fato, em nossa essência humana (coleção de erros e de acertos). Exatamente porque cada um/a de nós experimenta a cada nano segundo a mais profunda Ética: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

A aparente perfeição da redação é robótica, no pior sentido que podemos aplicar ao Positivismo – pelo fato de ambos, positivismo e redação, serem ou plasmarem a essência capitalista: só se percebe a ausência de provisionamento humano (erros e acertos); reproduzem em massa a “perda da aura social”, com crescente “perda de significado”, desmagificação (racionalidade abusiva, invasiva), posto que apenas copiam, republicam sem aviso prévio, a própria essência capitalista – a reprodução da base técnica que suga toda e qualquer subjetividade.

Para visualizar, por fim, o que a redação robótica pensa de mim, assista uma única vez essa “dancinha do Tik Tok”, porque já será suficiente para entender o que podemos chamar de Positivismo reprodutivista da inteligência antissocial: a despersonalização, a incapacitação do inventor ou do escritor. Nessa dancinha dos tempos modernos não há roteiro social. E também por isso o Narrador irá morrer de novo – morre todos os dias, aliás, como a biblioteca que queima com a morte programada de cada indígena.

Para quem se dá bem com “o fim da autoria”, por escassez interna e/ou preguiça (copia e cola), temos aqui um ótimo tema de redação – bem como sua segunda face: “reproduza artificialmente você mesmo”. Como disse, o resultado é igual: a era da reprodutibilidade técnica sem nenhuma singularidade, como potenciação positivista do “todo mundo é igual” e que faz todo mundo desaparecer. Baudrillard, um autor extensivamente pós-moderno, resumiria assim minha experiência após a redação robótica: “Onde havia o Outro, adveio o mesmo”. É fato! Porém, é um fato sem a minha singularidade.

Definitivamente, a programação humana é muito mais complexa do que caberia num algoritmo, nós temos muito mais metafísica do que qualquer vã física social poderia sublimar. Mesmo em erros e em acertos, não somos seres sociais binários, ligados ou desligados da condição humana.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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