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Vinício Carrilho

Antropologia Política do Virtual - o fim da inteligência social


Antropologia Política do Virtual - o fim da inteligência social - Gente de Opinião

É fato que, ao longo dos séculos, alguém sempre apontou para o Armagedon – e a Segunda Grande Guerra, com o implemento da Bomba Atômica, seguindo-se pela Guerra Fria, nos deixaram bem perto disso. Portanto, o “fim dos tempos” nunca foi novidade. Isso até hoje, porque, agora, “2001 – Uma Odisseia no Espaço” já é a nossa próxima viagem ... ou parada. O Hal não precisa de pilotos, assim como a Inteligência Artificial (IA) não precisa da humanidade – os usos atuais da IA não condizem, exatamente, com a profusão da dignidade humana. Basta-nos analisar a fase superior do capitalismo sob a imposição do sistema financeiro e do rentismo: uma mais valia automatizada pela IA.

Numa conclusão antecipada diremos que o reducionismo nos limita, atualmente, a suprimir a virtualidade, impondo-se uma visão de mundo limitada à crítica da forma hegemônica da “digitalização da vida social”. Não que não ocorra isso, é claro que sim, e seus efeitos políticos, além de gigantescos, estão resumidos no fato de que seis empresas transglobais de tecnologia e de informação (entretenimento) acumulam o poder mundial.

No entanto, um pouco da “Antropologia Política do virtual” amplia nossa visão de mundo e nos auxilia no entendimento mais sofisticado desse “novo” percurso. Pierre Lévy diz que "o virtual não é bom, nem mal". A metáfora das duas faces de uma moeda é boa para compreender o humano: desde o Mito de Prometeu, como expressão do conhecimento e da técnica, podemos ver o longo processo de hominização e as "criações" de rotinas e de trilhas elaboradas com o emprego da técnica: nossos extensores técnicos e "suportes da vida" são a "cara metade" da sobrevivência da espécie, da cultura, das primeiras "formas analógicas de sociabilidade” (um tipo de Ür social). Então, como duas expressões impressas desde o início, técnica e humanização mostram o que sempre fomos enquanto espécie (em constante "atualização"). O aprimoramento técnico sempre se serviu da hominização, tanto quanto o aprofundamento da inteligência social se garantia (garante) com o uso instrumental/essencial (adaptação, transformação) que a técnica impunha e impõe.

Por isso, também é possível visualizar que os suportes (a própria virtualização humana), de um lado, permitiram a "socialização da sobrevivência" (a virtualidade da "semente humana" que germinou e se afirmou como consanguínea do aprimoramento técnico: o domínio do fogo é um exemplo) e, por outro, revelam a face da nossa inexorável dependência da técnica (tecnologia). Também por isso podemos afirmar que o virtual (as virtualidades da espécie humana) não é neutro. O virtual, como face humana (os suportes técnicos da sobrevivência e afirmação humana: hominização) é político. 

O virtual é profundamente político e a prova disso está no Neolítico, no Ürstaat, nos sumérios: a forma-Estado que só acentuou o berço do “fazer-se política”, depois afirmado na Polis e na techné. Nossa Antropologia Política do virtual, por seu turno, não pode ser datada ou quantificada, da mesma forma como é impossível saber quantas vezes a humanidade criou, recriou, a forma do martelo como extensão de si, enquanto suporte do trabalho, da guerra e do esporte (nas Olimpíadas desde a Grécia antiga). Entretanto, é possível precisar uma “atualização”, um estágio da supremacia de nossa Antropologia Política do virtual com a extinção (absorção por completo) do Neandertal – a técnica sempre esteve ali, seja como técnica social superior, seja como técnica militar de domínio e imposição de outra cultura.

Desse modo, a crítica inicial dirige-se à tradução atual sobre “o que é virtual” (de maneira muito aligeirada, reducionista), limitando-se à imagem aparente de "digitalização da vida social": redes sociais por exemplo, com seus programados defeitos antissociais (algoritmos com retrato racista e fascista são outro exemplo). E já sabemos que não é ou não se limita a isso. Porém, de modo instrumental, utilizando a ferramenta (precária) da digitalização da vida social encontraremos uma "imaginação sociológica" nos anos 1950 (Mills), nos contando e relegando o posto subalterno do "robô alegre": era o início da obsolescência e da precarização em que os humanos “viviam” felizes consumindo e jogando fora seus desejos tecnológicos. A reincidência ou permanência desse gosto discutível, no século XXI, não é coincidência, é semelhança expandida.

Por outro, pelo viés da Antropologia Política do virtual, como suportes, meus óculos, notebook e minhas muletas permitem, no caso concreto, que externalize minha própria hominização – sem que tenha que me limitar aos tais “desejos tecnológicos” pelo consumismo e modismo pós-moderno.

De modo complementar, observando enquanto confluência entre a hominização e a técnica, podemos afirmar que a negação não era uma premissa definitiva na afirmação histórica, tanto é que estamos aqui. A dialética entre uma acurada técnica e a longa hominização (nem se pode dizer que tenha sido um processo único ou constante) sempre foi precisamente isso, isto é, uma dialética entre Homem e técnica: Yin Yang. Até este exato momento em que escrevo, a humanidade nunca se colocou um problema que não pudesse resolver, entre Yin e Yang sempre demos um jeito. E o virtual sempre foi um recipiente vazio à espera da ação humana. O Tao já informava o que é o virtual, antes do surgimento da cultura ocidental: “o jarro sem o lacre contém o seu significado específico”.

Esse conjunto de imagens nos lembra que, se o processo de hominização foi (ainda é) uma constante virtualidade – a dupla face entre técnica e hominização –, sob a base (i)material imposta pelo desenvolvimento da Inteligência Artificial, atualmente podemos estar assistindo ao que Marx não gostaria de ver: a humanidade pode ter-se colocado um problema incapaz de resolver (e que nasceu com a cara de solução).

A Inteligência Artificial, na fase superior, quando for uma só inteligência (e não múltiplas, como é hoje), um conjunto integrado controlativo de tudo, não precisará da inteligência social. O conjunto hominização/técnica não lhe será determinante, como foi para nós ao longo da afirmação da supremacia do homo sapiens. Assim como Hal não precisa de condutores (ele se conduz em meio à desumanização), podemos ter inventado algo que não precise de nós. Aliás, a dimensão “Nós” (com formação no Outro/a) não constará de nenhum “Dicionário técnico da humanidade”.

Indiferentes à distopia, ao ilusionismo ideológico, alguns países (ou indivíduos) intentam formular um Manual de Direitos Humanos das máquinas (os androides de Blade Runner), o que é revelador por si, pois deveriam guardar suas energias para a contenção de um problema (até agora insolúvel) e que salvaguardasse os direitos dos humanos, a começar do principal: a nossa sobrevivência em meio ao caos moral/social, político e ambiental.

A desumanização é tão profunda que já disponibilizamos nossos direitos para máquinas que podem nos suprimir, fazendo uso de sua “inteligência própria”. O fetichismo nunca foi tão absurdamente impositivo e negligente com o uso da inteligência humana quanto agora, pois, trocamos o raciocínio lógico-dedutivo pela distopia mais próxima nas prateleiras pós-modernas. Seria equivalente a tolerar o “direito nazista” dos nazistas professarem livremente o nazismo – e que é o “direito nazista de eliminar quem os nazistas não gostem”.

Ainda que sempre tenhamos capacidade de superação das contradições e ainda que tenhamos passado perto da aniquilação (ou estejamos muito perto, no ritmo atual do capitalismo de barbárie e risco), a superação sempre deu o tom na fórmula da "negação da negação". A superação sempre foi germinativa (o Utopos da virtualidade) e propositiva (práxis). Daí a "hominização técnica" como princípio ativo do Processo Civilizatório.

Em uma frase: a humanidade sempre foi o Polo ativo, no controle e na determinação da técnica – para o seu bem e para o seu mal, mas hoje caminha rapidamente para encerrar seu ciclo de afirmação e de supremacia.

Numa estranha dialética negativa é possível dizer que, se a técnica é a haste ou uma lente da visão de mundo que se materializa na hominização, e se a técnica é um produto humano (suporte da vida social), com a desumanização já gravada na fase atual da Inteligência Artificial (logo), podemos concluir que inventamos uma técnica (IA) que irá destruir a própria técnica: essa técnica que prosperou até agora, com a hominização.

·       A IA, finalmente, irá decretar o fim da história?

·       No futuro próximo seremos capazes de inventar algo mais humanizador do que a IA?

·       Se a IA já perfila até o futebol (Botafogo do RJ), seremos inteligentes o suficiente para impedir que o Eu Robô (o “NÓS” não existe para a IA: o título de Asimov não foi à toa) decrete o Estado de Sítio da humanidade inteira? 

De todo modo, é fato que a desumanização levará ao fim da techné. Ou já chegamos nesse ponto, e a IA ainda não nos contou. 

A ironia final, maior, está em que, no futuro (talvez não muito distante) o que restará de nós, humanidade, será o nosso principal produto (suporte), a Inteligência Artificial que nos impôs (impõe) a total desumanização. 

Quando os ETs chegarem à Terra não encontrarão a humanidade, mas sim a história da humanidade elaborada pela Inteligência Artifiial – na “narrativa artificial da vencedora”. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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