Quarta-feira, 8 de março de 2023 - 14h39
Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Associate Professor at Federal
University of São Carlos (UFSCar)
Líder do Grupo de Pesquisa Sociedade
e Educação
https://www.youtube.com/@ACienciadaCF88
Todos
sabemos que, na prática, todos os presidentes da República indicam ocupantes ao
Supremo Tribunal Federal (STF). O STF ocupa a posição superior no Poder
Judiciário, a chamada “última instância”, onde se faz “coisa julgada” – da qual
não cabe mais recurso, salvo condições em que o próprio STF pode revisar
decisões anteriores. A indicação de um membro para esta Corte Superior, advinda
de outro poder (Executivo), em tese, seguiria a lógica do equilíbrio entre os poderes
– a fim de que o Executivo, o principal poder em termos econômicos, sempre
tivesse uma representação na corte judicial. Como são vários presidentes que
indicam, por meio do rodízio, muitas “alas ideológicas” estariam representadas:
positivistas, punitivistas, garantistas etc.
Porém,
na prática, sempre pode haver uma casca de banana: indicar-se amigo ou inimigo
ao STF não é fato desconhecido de nenhum de nós, mas precisa ter um fim. Neste
caso, a tal insistência em equilíbrio se transforma em insurgência do Executivo
contra os habituais controles republicanos. Vimos isso nas últimas nomeações,
com forte apelo contrário à laicização do Poder Político – o Estado Laico ainda
está sob forte ameaça.
Muitos
outros problemas podem ser facilmente observados (ainda que supostamente)
quando se imagina nomear um “amigo” para que, num futuro qualquer (e se for o
caso), venha a se constituir no “juiz amigo indicado”. Nem todos os membros do
STF vieram da magistratura, mas ali atuam e decidem como magistrados. Então,
todo presidente que indica um membro ao STF, obviamente, indica um suposto juiz
de suas próprias ações e causas.
A
regra permite isso e o problema, portanto, não é de natureza legal – não
decorre da natureza jurídica do STF. O problema é ético, moral, da ordem e da
natureza jurídica da moralidade pública. A não-ilegalidade não advoga pela
inexistência da Ética. Os postulados da Administração Pública, em si, já estão
cabulados nessa operação, uma vez que o LIMPE (art. 37 da CF88) não estará aí
todo percebido: a Impessoalidade no trato com a coisa pública é o primeiro a
ser corroído, quando se é capaz de indicar juízes para a Corte Superior.
Se
nossa cultura, patriarcal e patrimonial, é eivada de “jeitinhos brasileiros”,
troca de favores, toma lá, dá cá, interferências enviesadas, nepotismo,
coronelismo, não é de esperar outra composição se, por ventura, venha-se a
indicar um amigo conhecido e reconhecido. Imaginemos a possibilidade de
indicarmos o advogado pessoal (amigo, por óbvio) a ocupar uma cadeira no Supremo
Tribunal Federal...é claro que só esse pensamento, essa veiculação de ideia, é,
por si, extremamente prejudicial ao Estado Republicano. Os princípios gerais do
direito, igualmente, não suportam tal ação ou desventura, a começar pela norma
(régua ética) em que predomina o “honeste vivere”. Sabemos disso tudo desde
Cícero – vejamos breves reflexões do senador romano:
1.
A
felicidade está na perfeita Constituição Política.
2.
Na
República predomina a Justiça.
3.
A
maior necessidade é a virtude.
4.
Governar
a República é converter a teoria em prática.
5.
O
Governo com justiça eleva a “herança da humanidade”.
6.
Para
o republicano, a felicidade está em combater a ignorância.
7.
O
homem digno da República reúne os atributos da humanidade.
8.
A
sabedoria política está em não querer o que não se pode ter.
9.
Na
República, cada um sabe o que é seu.
10.
Servir
a República é o maior testemunho da virtude.
11.
A
República é o governo do povo.
12.
Os
fundamentos da República estão no consentimento jurídico e na utilidade comum.
13.
O
Estado deve ser uma sociedade para o direito.
14.
Da
excessiva liberdade surge o tirano.
15.
O
compromisso com a República é um compromisso com a verdade.
16.
A
República é como uma obra de arte, deve-se restaurar para manter.
17.
É
preciso combater os vícios públicos para restaurar a paz.
18. A
República é uma sociedade de homens formada pelo império do direito.
Não
é preciso e nem necessário, portanto, invocar-se as escusas de que não há
ilegalidade em se nomear amigos, mais ou menos próximos. Porque, o que está em
litígio não é a lei permissiva, falha, lacunar, mas a Ética que deve organizar
o tecido social, é a inteligência política que deve se pautar pela “coisa pública”,
é a sensibilidade meridiana que deve ser o norte, a guia, a fim de que nenhum
governante se julgue superior aos seus governados. Quantos cidadãos podem
dispor de seu próprio juiz? O jogador de futebol, abusador, pode escolher um
juiz na prateleira especial de suas vontades pessoais?
O pior de tudo é corroer
as bases mais simples, notórias, óbvias, do Estado de Direito. Que
decisões sairiam daí, em total negação ao Estado-Juiz? Não se promove, nos
escaninhos da lei omissa, uma gravíssima violação da Constituição?
Basta-nos ler pra entender o Espírito Constitucional. Que o
leigo pense diversamente é próprio do senso comum, e que em tudo difere do Bom
Senso que deveria ser o gestor do melhor interesse público.
Na
República, deve-se remover todos os resquícios do “poder ex parte principis”.
Quanto mais consciente, democrático, republicano, for o governante, quanto mais
saberá colocar em prática a lisura almejada na composição dos poderes.
Se
nossa educação, especialmente a da rede pública, fosse eficiente na condição de
formar cidadãos republicanos[1] –
como “governantes em potencial” (CANIVEZ, 1991), este artigo sequer teria sido
escrito; simplesmente porque essa hipótese de indicar amigo ao STF não teria
lugar nem mesmo em sonhos (ou pesadelos). Este exemplo, como muitos outros
vinculados á formação social e cultural brasileira, notadamente, em que a
isenção pública é um luxo, uma exceção (e não a regra obrigatória),
poderia/deveria ser articulado em termos de fundamentos republicanos desde o
ensino fundamental. Além de ser obrigatório o ensino e o debate crítico e
criativo da Constituição Federal de 1988 (MARTINEZ, 2021); aliás, o ganho seria
dobrado, uma vez que o ensino religioso seria expurgado com vigor da escola
pública. No seu lugar, a República estaria sendo assentada.
Essa
mesma conotação também pode ser observada em Maquiavel (1979), quando ao final
do livro O Príncipe assegura que o “valor tomará armas contra o furor”. Que
valor é esse? Na verdade, são os valores republicanos – condensados num só
valor superior, supremo, soberano: o “potestas in populo” nos obriga
(legalmente, moralmente) a servir à coisa pública, à República de todos, de
governantes e governados.
Quem
sabe um dia nós amadureçamos enquanto Povo, para que nunca mais tenhamos que debater
indicações/nomeações ao STF, sobretudo sob as bases do compadrio, e a fim de
outras regras antidemocráticas também evoluam para o esquecimento: quando se
acabariam as famigeradas listas tríplices, em que o governante ainda pode
nomear aquele que é mais amigo ou menos inimigo. Mas, obviamente, passando por
cima da cláusula pétrea do voto livre, secreto, periódico e soberano.
Nossa
função principiológica, enquanto educadores e formadores de opinião é lutar
para que enlutemos tudo que possa ser legal, mas antiético. Não há como ser
diferente, se pensarmos que precisamos resgatar a moralidade institucional,
amplamente atacada e destruída após o Golpe de Estado de 2016. Nossa obrigação
está em lutar contra toda regra que ainda esteja em vigor, mas que desfralde a
civilidade pública, republicana.
●
Não basta ser
democrático, tem que ser republicano; não basta parecer honesto, tem que ser
isento (e honesto).
Terminamos
o texto com essa espécie de slogan, além de uma sugestão legal (e aqui
legítima): que, em rodízio, a magistratura, o Ministério Público e a Ordem dos
Advogados do Brasil indiquem membros ao STF. E que seja abolida a lista
tríplice, dando-se posse ao mais votado – no STF ou em qualquer outro Lugar
Público. Só assim teremos uma República, com triunvirato no STF; contudo, sem
que haja a intercorrência de nenhum tipo de César.
Nomeações
bibliográficas (republicanas)
CANIVEZ, P. Educar o cidadão? São Paulo: Papirus, 1991.
CÍCERO, Marco Túlio. Da
República. 5ª ed. Rio de Janeiro : Ediouro Publicações, s/d.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. O Conceito de Carta Política na CF/88:
freios político-jurídicos ao Estado de não-Direito. Londrina: Thoth, 2021.
MAQUIAVEL, N. O Príncipe: Curso de Introdução à
Ciência Política. Brasília-DF: Universidade de
Brasília, 1979.
[1] Garantias
institucionais de controle do poder democrático. Jus Navigandi, publicado em
11.10.2003, em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4230.
Educação Para o Espírito Público. Jus Vigilantibus, publicado em 23/11/2003a,
em: http://www.jusvi.com/site/p_detalhe_artigo.asp?codigo=1395.
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