Sábado, 15 de junho de 2024 - 08h15
A
mulher vítima de estupro poderá receber uma pena maior do que o crime que impôs
(violentamente) o objeto do seu suposto crime (aborto)? Sim, no Brasil, na
passagem do século XVI ao XVII...só que estamos vivendo isso agora. Um bafo
nojento do passado escabroso voltou em sua revolta contra a civilidade. Pelas
mãos do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e com a assinatura de 32 outros
deputados, foi proposto o projeto de lei 1904/2024, que equipara a crime o ato
de cometer aborto após 22 semanas de gravidez, mesmo em caso de estupro.
De
fato, nunca se imaginou que o país chegasse ao nível de não "só"
punir, mas sim criminalizar a vítima: a mulher/menina estuprada. O absurdo fica
ainda pior se pensarmos que esse PL não toca no agressor, criminoso. Na
verdade, ao punir a mulher vitimada por esse crime bárbaro (deveria ser tratado
hediondo), o PL sinaliza que o criminoso tem uma carta em branco para preencher
com seus atos odiosos. Possivelmente, nenhuma teocracia (das mais boçais)
chegou a esse nível de irracionalismo.
A
proposta de Sóstenes (PL-RJ), figura próxima ao pastor Silas Malafaia, aparece
como peça de xadrez do jogo político brasileiro atual. A existência da proposta
em si já coloca pressão sobre o presidente, obrigando-o a tratar sobre um tema
espinhoso na sociedade brasileira. Além disso, exige uma resposta da
presidência à bancada evangélica do Congresso, algo que o próprio Sóstenes
afirmou. Ou seja, é uma pauta que afeta diretamente a vida de mulheres e
meninas sendo usada para criar instabilidade política.
Realmente,
não sabemos se a história do direito traz algum caso legislativo em que a
vítima (além do mal já recebido) ainda receberá uma punição gravíssima. A pena
atribuída deverá ser de homicídio: provavelmente o aborto será qualificado como
homicídio doloso, com intenção de praticar a morte. Não há lógica, não há racionalidade.
Então, não procuremos entender por este viés. Fazendo uma corruptela de Gramsci,
talvez um Cesarismo Legislativo regressivo, repressivo. Seria um tipo de
ditadura legislativa, visando-se o retrocesso moral. Juridicamente, não encontramos
algum paralelo tão irascível.
O
presidente da Câmara dos Deputados Artur Lira (PP-AL) aprovou o regime de
urgência para a proposta, passando por cima dos ritos previsíveis e necessários
para a votação de uma pauta delicada e que muda o Código Penal Brasileiro. É
preciso haver discussões em comissões específicas, as mulheres precisam ser
ouvidas. Esse é o trâmite básico de temas que vão para a votação no plenário. A
tentativa de Lira adiantar a pauta direto para votação no plenário demonstra
sua reaproximação com o bolsonarismo da bancada evangélica como meio de
garantir a eleição de seu sucessor na presidência da Câmara.
No
Brasil, meninas menores de 14 anos são as principais vítimas de estupro. A
estatística indica que pelo menos 38 delas engravidam diariamente. Muitas
sequer sabem reconhecer que estão grávidas, além de ter dificuldade no acesso
ao cuidado médico. Com o PL 1904/2024, são interesse políticos e eleitoreiros
que jogam com vidas de meninas e mulheres, obrigando-as a terem filhos de seus
próprios algozes. Na articulação nefasta da política que ocorre no Congresso
brasileiro, o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) criticou o
movimento de Lira e sinalizou que o Senado deve submeter o tema às comissões
próprias antes de qualquer votação.
Simone
de Beauvoir já afirmava que os direitos das mulheres sempre estariam sob risco,
por isso era preciso manter a eterna vigilância. Vamos combater esse PL de
autoria da teologia da bíblia, hipócrita e safado (porque rico aborta em
segurança, toda hora). É o Fascismo eterno fazendo eco nas cabecinhas vazias e
pudicas, enquanto prende crianças pobres estupradas. Esses são os grotões
grotescos do país, e que esbanjam moralismo nas medianas classes médias,
apequenadas, ignorantes, toscas.
Incomoda
ainda o pior dessa ignorância: o apoio dos tais "trabalhadores e
trabalhadoras liberais". Mas, é claro né? Os tais liberais não se veem
como classe trabalhadora. São os mesmos remediados que preferem os remédios da
especulação e da exploração. Tem se tornado cada vez mais difícil, muito
difícil, falar da ignorância como padrão, como nota de corte, da cultura
brasileira.
PL
1904 NÃO.
CRIANÇA
NÃO É MÃE.
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