Sábado, 9 de novembro de 2024 - 11h19
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Cientista Social e professor da UFSCar
Márlon Pessanha
Doutor em Ensino de Ciências
Docente da Universidade Federal de São Carlos
“Senhoras e senhores:
reunidos, vamos nos reunir, para reunir!”
Não se preocupe, ao final você
entenderá que diabos quer dizer essa sentença.
Tem um livro tipicamente
anarquista, com críticas contundentes ao que se chama de Tecnoburocracia – uma
burocracia que serve ao poder e a si mesma; melhor dizendo, que cria mais
burocracia, a cada dia (pouco importa se há um discurso de “coletividade”),
simplesmente para manter seus empregos. Diga-se, de passagem, que essas
personagens ganham muito mais do que qualquer docente de universidade pública,
e mesmo que seja professor titular. De algum modo, essas coisas se ligam ao
Mito do Fausto, um ser diabólico que só queria arrancar o couro e a alma das
pessoas. Por isso vamos a isso primeiro.
A história do Fausto deveria ser
contada em todas as escolas, porque traz a história do capitalismo a partir do
Renascimento, a fase que, logo depois da Rota da Seda, nos brindaria com a
“descoberta do Brasil” pelo fogo das caravelas da chamada “expansão
ultramarina” – uma prévia da colonização que ainda escravizaria a maioria do
nosso povo.
Porém,
como essa história original não é contada, nós ensaiamos aqui umas linhas: o
povo teria contada a história apócrifa do Fausto, o diabo em pessoa, que
arrancava o couro, a alma, os tostões dos mais pobres daquela época. O diabo, é
claro, era o capitalista daqueles tempos, notoriamente os banqueiros – os
agiotas autorizados pelo Estado. Depois, tivemos um Maquiavel contando as
peripécias de um Arquidiabo na forma de flores, ou melhor, nas roupas de
clérigos e Arcebispos.
O período clássico do
capitalismo que nos tira o couro, a alma e a inteligência, viria com um autor
alemão absolutamente genial, filósofo nas linhas e entrelinhas de um conto que
levou 20 longos anos para concluir: esse gênio chamava-se Goethe e fez duas
versões sobre o mito do diabo em pele de cordeiro – um Goethe mais novo e um
Goethe mais velho. Parece a história da Chapeuzinho Vermelho, mas é mais
brutal.
Pelo
meio inicial da história, Goethe já avisava com quantos dissabores o
capitalismo corroía as pessoas:
MEFISTÓFELES
Vamos, engole! Com despacho!
Num aí, delícia em ti derrama.
Como! És tão íntimo com o Diabo,
E te apavoras vendo a chama?
(Goethe, 1997, p. 122).
Ao longo da história do
capitalismo, ele se reinventou para se manter. A essência é a mesma, mas os
artifícios para maximizar os produtos, massacrando os processos e os sujeitos,
se transformam nas mais diferentes roupagens. Fausto, o diabo em pessoa; o
Arquidiabo; ou o diabo em pele de cordeiro: há uma essência em comum. As
práticas, contudo, se diferenciam segundo o seu tempo histórico, ainda que nos
tempos e espaços de cada história.
E qual seriam as práticas de
nosso tempo histórico?
Retomemos, agora
parafraseando, Goethe:
Vamos, engole essa joça, em
burocracia monumental que acabamos de criar em nossas “instâncias coletivas” (e
viciadas pelo não-fazer). Engole, sem pausa – deixe o refluxo para as suas
belas noites não dormidas. E tome outro cadinho de sinais obscuros, nonsense,
que vai e volta, que “atravanca” seu trabalho produtivo, criativo. Vai burro de
carga, quem mandou não estudar direito e arrumar um emprego melhor, que
produzisse pensamentos, conhecimentos, ao invés de encher o carrinho de
supermercado de “nadas, vezes nadas burocráticos”. Tua sina é se aposentar, com
o miolo meio mole, carregando as malas burocráticas, cheias, sem rodinhas, sem
alça. Essa é a nossa relação contratual, empregatícia...
De acordo com esta relação
contratual, de sedução eterna pelo consumo, não há que se distinguir entre Deus
e Diabo: o sagrado foi profanado, diria a crítica materialista do século XIX.
Para
nós, essa lógica está presente desde (ao menos) a criação do Estado Moderno e,
no caso brasileiro, desde os mais longínquos rincões do Estado patriarcal,
racista, expropriador. É claro que muita
coisa aconteceu no Brasil, desde essa forma-Estado que se mantinha no poder com
mais corrupção. Hoje, o Estado brasileiro é enorme, tem burocracias infinitas –
no passado recente tivemos um “ministério da desburocratização”. Não existe
mais. Teria sucumbido à burocracia? Ironia à parte, o certo é que não conseguiu
alcançar em seus objetivos. Não deu em nada, é lógico.
Parte
volumosa dessa burocracia é paquidérmica, isto é, lenta, inútil e caríssima. Até
há argumentos pró-burocracia, reconhecemos. Muitos deles, se remetem a uma
suposta (inventada) segurança jurídica e a um controle da corrupção. Mas
repitamos, quase como em um mantra, se isso nos ajudar a fixar: o sagrado foi
profanado. A busca pela correção (o puro e o sagrado) foi submetida à lógica do
capital que tem em nosso tempo histórico, na burocracia, meios de subsistência.
Talvez nos valha um exemplo dos mais humanamente corriqueiros e não acadêmicos:
como regra, em uma negociação de um imóvel, o vendedor não deve ser uma pessoa
incapaz de suas próprias decisões. Segundo protocolos e respeitando hierarquias,
uma pessoa ou órgão com fé pública poderá emitir uma certidão que comprove que
não há interdições relacionadas com o vendedor. Contudo, os desdobramentos e as
especificidades com que se gera a certidão seguem uma burocracia que se
justifica somente por si mesma: os desentendimentos entre instâncias, unidades
federativas, cartórios, selos para cá ou acolá...
Ficamos extenuados só em
pensar! O diabo se aproveita de torres de babel. A busca pela santidade ética e
moral é convertida na profana burocracia.
A burocracia está em tudo e
perpassa todos. Até mesmo nos espaços em que, seria de se esperar, há uma
liberdade de pensamento e de ação, ainda que sob delimitações, a burocracia
está lá, à espreita, como monstros sugadores de alma ou, leia-se, de tempo,
criatividade e energia. As universidades, oásis do pensamento de outrora, estão
sendo tomadas por processos e dinâmicas extenuantes. Os trabalhos
institucionais das universidades públicas – do MEC para baixo, estão
mergulhados na burocracia.
Ainda
defendemos a universidade pública! Ainda entendemos que ela é o principal espaço,
em nosso país, de construção do conhecimento científico. Ainda entendemos que a
universidade tem um potencial, não tão explorado, de diálogo com a sociedade em
torno de suas demandas genuínas, não restritamente ligadas à lógica do capital.
Apesar disso, vemos as universidades se desconstruindo, em seu papel, missão
essencial, pelos sucateamentos financeiros e processuais, os quais, nos
parecem, são indissociáveis.
Como lidamos e trabalhamos em
universidades federais – públicas e pobres, sem reajustes, com planos de
trabalho caquéticos – iremos destacar melhor nossas peripécias e labutas, dia
sim, no outro também.
Há alguns poucos anos, a
universidade pública tornou-se um alvo, primeiro velado e depois explícito, de
ataques que se deram, principalmente, na forma cortes de verbas, “inovações”
trabalhistas e ilações obtusas. Sob o pretexto de uma “austeridade”, que teima
em recair quase sempre na educação, saúde e em outros serviços públicos, a
universidade passou a ser carregada por um contingente menor de servidores, os
quais se desdobram em atuações que vão além daquelas funções para as quais ingressarem
no serviço público.
Algumas funções e cargos que
existiam nas universidades federais foram extintos, sendo substituídos por
empresas terceirizadas. Contudo, também foram feitos recorrentes cortes
orçamentários que não permitem às universidades contratar os serviços
terceirizados necessários. Pelos corredores, com certa frequência já ouvimos
relatos de servidores que fazem uma ou outra coisa funcionar (ou existir) com o
dinheiro que vem de seu bolso. Somado a isso, a universidade que, convenhamos,
já tinha seus tradicionalismos e burocracias, se aprofundou em trâmites e processos.
Como uma entidade alvo de
tantos ataques, a universidade passa a se defender com autorizações para
autorizar, reuniões para validar o que já estaria validado, solicitações de
soluções para questões do cotidiano que dançam, como em uma lenta música de
compasso gravíssimo. Nesse cenário, decisões corriqueiras que poderiam ser
tomadas por gestores, diretores, coordenadores, entre outros, em suas funções
regulares, passaram a ser levadas para colegiados que conferem, na segurança da
burocracia, a legalidade. Há ônus nisso: perde-se energia e, junto, a dedicação
ao ensino, à pesquisa e à extensão.
Já temos, nas universidades,
reuniões para decidir quando iremos decidir e, lógico, outras mais para dar
sequência ao processo de decisão. Nossa crítica, ou angústia, não é em relação
aos processos democráticos, participativos e dialógicos. Isso é necessário. O
que preocupa é a remoção do tempo com tarefas banais que levam, inclusive, às
reuniões rápidas para marcar outras reuniões.
Esse exemplo, claro, é muito específico
e, eventualmente, não encontra lugar em todas as universidades. Não queremos,
aqui, generalizar. Passemos a outros exemplos, então, que podem estar presentes
em outras tantas universidades.
Falemos sobre a pós-graduação,
o principal espaço em que se faz ciência em nosso país. Uma parcela
significativa do conhecimento científico que é construído no Brasil, nas
diferentes áreas de conhecimento, é feita por pós-graduandos sob a orientação
de pesquisadores, docentes universitários. Contudo, estes mesmos docentes que
encontram, na pós-graduação, um espaço para desenvolver suas pesquisas e
contribuir com a formação de novos pesquisadores, recebe como funções o
preenchimento de formulários, o fornecimento de informações que, quase sempre,
são quantitativas, participam de algumas (por sorte não todas) reuniões que
pautam somente questões administrativas, entre outras funções que vão muito
além do ensino, da pesquisa ou da extensão universitária.
Se o docente pesquisador é
coordenador de um curso de pós-graduação, dobre esse trabalho. Se o curso de
pós-graduação foi alvo do sucateamento universitário, de tal modo que nem
dispões de secretaria administrativa (leia-se, trabalhadores especializados em
cuidar do trabalho administrativo), duplique o duplicado e ganhamos um exemplo
cotidiano de uma progressão geométrica. A burocracia desnecessária concretizada
em “prestações de conta”, na necessidade de quantitativos para receber notas, amplificada
por sistemas de informática mantidos pelo governo que “não conversam” entre si,
acentua o desgaste. Nos últimos anos, o desgaste na pós-graduação é tanto que
já não tem sido incomum que pós-graduando bolsistas sejam convidados (sic) a
auxiliar no trabalho administrativo.
Vamos além, ainda tratando da
pós-graduação, para ilustrar como a burocracia corrói a universidade e, ao
mesmo tempo, se torna prática cultural e é institucionalizada em decisões: há
uma dinâmica de credenciamento de docentes orientadores nos programas de
pós-graduação que, pautada em números e em regras que são aceitos como mais
sagrados que o divino, mantêm, impedem ou dificultam a atuação de
pesquisadores. É mais comum do que deveria ser, e por sorte não ocorre em todos
os programas de pós-graduação, que pesquisadores tenham que esperar ciclos de 4
anos para tentar um credenciamento em um programa de seu interesse. A origem da
regra, em geral, está em decisões de colegiados dos próprios programas que, com
a validação da “coletividade”, sufocados pela burocracia, geram mais
burocracias.
Precisamos não mais
quantificar o que não é quantificável. Há uma necessidade, quase de
sobrevivência da universidade, de reduzirmos essa máquina de recriação
burocrática. Lógico que, para isso, as universidades deveriam deixar de ser
alvo. Mas não só isso. A universidade precisa desinstitucionalizar a
burocracia. Deveríamos, pois, termos uma espécie de “ministério da
desburocratização” nas universidades?
Terminemos por aqui, pois é
bem possível que alguém pense em criar regras para isso...
Desse
modo, nesse conjunto de travamentos à inteligência, não é difícil entender a
sentença inicial, afinal, uma vez que estamos reunidos, vamos nos reunir
novamente, para nos reunir...
Referência
GOETHE,
Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1997.
A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes
A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez
Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci
Todos os golpes no Brasil são racistas. Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas. É a nossa história, da nossa formação
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a