Segunda-feira, 13 de março de 2023 - 12h50
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Cientista Social e servidor público federal (UFSCar/SP)
Veremos que a definição de República não é sinônimo de
prática e de Teoria Política reacionárias, posto que a República se define pelo
conjunto das garantias e dos direitos fundamentais, pela separação dos poderes
e pelo estrito cumprimento do dever legal. O exemplo escolhido é o das joias da
ex-primeira dama, confiscadas pela Receita Federal na origem do “último”
possível crime de peculato. Numa definição ainda mais simples, podemos dizer
que, por República, trata-se de assegurar a Coisa Pública (salus publica) contra toda sorte de malfeitos: exemplares, neste
ínterim, são os crimes de corrupção ativa (de agente corruptor) ou passiva:
quando o solicitante de “vantagens” é servidor público.
Ao
contrário disso, a corrupção da República está em se tratar a Coisa Pública
como se fossem meras joias da coroa, mesmo que o rei já esteja posto,
destituído ou em estágio de exílio: a história nos mostrou esse curso, das
cortes francesas à Corte de Haia – no caso brasileiro, o genocídio é a senha de
entrada.
Uma
das vertentes mais claras da República esteve (está) em pauta desde que a
cúpula da ex-presidência tentou entrar no país com mimos de valores ilegais.
Superiores a 16 milhões em joias, os mimos nunca deveriam ter sido recebidos,
menos ainda na condição de dote pessoal – iriam ao acervo público[1], se
já não estivessem no miolo de outro imbróglio ainda maior: a venda de uma
refinaria para aquele que adora presentear.
Tudo isso é muito chocante e seria pior, não fossem as
negativas dos servidores públicos diante das pressões para que as joias
pudessem adornar o corpo da ex-primeira dama. Servidores públicos federais,
estáveis em suas funções e carreiras, puderam resistir às pressões políticas e
militares, enfrentaram os emissários – as chefias inclusive – e renderam as
joias que acabaram aprisionadas pela lei[2].
No entanto, este é apenas um dos múltiplos exemplos de
segurança institucional que os servidores públicos, de forma geral, promovem
todos os dias em seus trabalhos. Desde 2020, no pior da Pandemia e dos governos
negacionistas – do Executivo central aos Estados e municípios da Federação –,
trabalhadores e trabalhadoras da saúde enfrentaram o poder e muitas vezes o
próprio povo. Resistiram e ainda resistem, afinal, “reação vacinal”, no Brasil,
diz mais quanto à recusa de quem jamais irá completar a cobertura vacinal, do
que tem relação direta com os efeitos advindos da vacina. Por isso, desde
aquela época, fala-se que vivemos uma Revolta da Vacina às avessas.
Dos policiais que se recusaram ao avanço fascista – em
disputa com seus pares alinhados inúmeras vezes ao genocídio –, aos professores
e professoras da rede pública que desafiaram o cerco moralista degenerado,
preconceituoso, há em comum o Senso Comum da civilidade (e a estabilidade
funcional).
Todos os ataques (atentados, inclusive) que a Universidade
Pública sofreu e ainda sofre, só não tiveram efeitos piores porque as
resistências por meio da Ciência, do conhecimento, do pensamento crítico,
contiveram os males maiores dessa mesma prática fascista e ilusionista. Os
detratores da Universidade Pública estão na política e no mercado, e no senso
comum que foi na padaria repetindo a correia de transmissão das redes sociais
forjadas por desinformação e mentiras.
Quem produz Ciência no Brasil e nos impede de retroceder à
Idade Média, ao barbarismo social e cultural, é a Universidade Pública. Há um
arremedo entre algumas privadas ou confecionais, neste quesito, mas esse status
só confirma a regra. E por que, a despeito dos crimes cometidos contra as
instituições e pessoas, já em 2017, 2018, não lograram vitórias reincidentes em
favor do atavismo, da ignorância, do embrutecimento? Porque atuou e atua a
estabilidade do serviço público.
Há outros elementos que devem ser registrados, quando se
desafia o malfeito na porta do serviço público: 1. Dá-se exaltação ao Império
da Lei e isso quer dizer que o serviço público deve ser cumpridor da lei – ou
se desafia, se a própria lei for atentatória ao Espírito Público; 2. Servidor
ou servidora pública trazem em seu registro uma ideia linear, comum e simples,
uma vez que devem “servir ao público” e jamais se servir disso. É por isso que
respondem por tipificações específicas, pois se de um lado, na proteção
funcional identifica-se a “boa fé”, de outro, aos violadores dessa “boa fé”
instaura-se o crime de peculato: para ficar somente em um exemplo de crime
próprio. A culpa, mesmo esta, tem imbricações típicas que conduzem à imperícia.
Isto foi assim arranjado, por longos séculos, exatamente,
para que o poder consagrado pela política tivesse um freio de contenção
institucional. De certo modo, isso nos evidencia o núcleo do que se denomina de
Estado Republicano: a capacidade de transformar, legalmente e legitimamente, o
poder político em Poder Público. Sendo este Poder Público a essência moral e
funcional da República.
Sob a condição republicana, o poder não pode funcionar para
os poderosos, mas sim estar devotado a servir os abrigados pelo Poder Público,
incluindo-se aí o patrimônio público – o mesmo que não pode ser devorado pelo
mercado (na ideia de um Estado Mínimo) ou “doado” a preços de banana para outro
país – como foi o caso das joias que iriam enfeitar a ex-primeira dama. O Poder
Público apenas é capaz dessa ação republicana se e quando serve-se ao povo, e
jamais estará presente se acaba por se servir “do povo”.
Na somatória com a Democracia, tanto sob os elos da prática
política pessoal quanto institucional, temos outra vez a reação contra o
fascínio provocado pela banalização do Fascismo (quando tudo parece convergir
ao Mal Público) e isto só foi e é possível graças à estabilidade pública:
também há inamovilidade, no caso da magistratura. Vimos amplamente os duelos
praticados em benefício do povo e da Democracia a partir de indivíduos e de
tribunais, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A Democracia, se pudéssemos resumir numa sentença, tem uma
regra só, e é exatamente a defesa e o cumprimento das regras do jogo. A melhor
regra do jogo, além do voto livre, secreto, soberano e periódico, é a que
defende o Poder Público contra os ataques e achaques descolados do interesse e
do patrimônio público.
Enfim, esta junção se articulou desde os anos 1970, em
Portugal e na Espanha, com os apelidos de Estado Social de Direito ou Estado de
Direito Democrático. No Brasil de 1988, inaugurou-se uma era de Estado
Democrático de Direito – esse mesmo que os servidores públicos da Receita
Federal defenderam, confiscando as joias da coroa da rainha já sem poder.
Finalmente, de modo conclusivo, podemos acrescentar alguma
institucionalidade a esses quesitos. Conceitualmente, o Estado Federal ou
Estado Federativo é composto de vários elementos, sobretudo pela definição e
defesa da República (Estado Republicano), da Democracia (Estado Democrático),
da ética ou ethos público (Estado
Ético de dever público) e da
participação popular na política (Estado Popular). Há elaborações políticas que
também necessitam de uma melhor distinção acerca de seus elementos políticos e
jurídicos (Estado Constitucional) e aos quais seguir. No Estado Republicano, é
notável como as regras de temporariedade,
eletividade, transparência – exposição e visibilidade política e administrativa
– e responsabilidade (definidas
antecipadamente por lei) remetem ao núcleo dos princípios democráticos. Hoje em
dia, pode-se entender o conceito de República Federativa como uma maneira de
governar (ou forma de governo) própria ou específica (res pública), podendo ser mais ou menos popular e democrática, e
que melhor gerencie as coisas públicas e que esteja de acordo com os interesses
públicos – agregando-se a presunção do bem comum à preservação do bem
público –, como se fora uma aliança, organização ou união indissolúvel de
interesses e de entidades federativas essenciais à vida pública e, portanto,
definidos como públicos[3].
Em interface com a República, é fácil perceber que a joia da
coroa é o Povo.
[1] Consta que já estavam no acervo do
patrimônio público quando se tentou um “resgate”: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/03/12/joias-bens-ministerio-economia-ultima-tentativa-de-bolsonaro-pegar-diamante.htm.
[2] https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2023/03/12/reacao-de-servidores-publicos-conteve-governo-bolsonaro-em-varios-setores.htm.
[3] MARTINEZ,
Vinício Carrilho. Teorias do Estado:
metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.
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