Quinta-feira, 1 de junho de 2023 - 10h37
Vinício
Carrilho Martinez
Cientista Social e professor da
UFSCar
Marcia
Camargo
Doutoranda pelo PPGCTS/UFSCar
Erilza
Braz dos Santos
Vice cacica Uruba
No
início, eles foram obrigados a falarem em português, foram obrigados a
escreverem em português e foram obrigados a compreenderem e se comportarem com
a imposição de costumes, crenças e significados de palavras com uma visão
cosmológica que não os pertencia.
Os
colonizadores chegaram e ignoraram sua organização social, cultural e política
dos nativos da região, pois não correspondia ao que definiram como civilização.
O Brasil assim foi moldado, estruturado e “organizado”, foram oferecidas terras
a estrangeiros para que viessem e introduzissem seus modelos de sociedades já
“civilizadas”, e assim foi construído o país que foi dado o nome de Brasil.
Com
sua arrogância, chegaram rapidamente à conclusão de que não haviam instituições
neste nosso país – nos chamaram de autóctones, incapacitados à civilização
colonizadora, dissolvente. E é essa mesma presunção que nos arrastou até o
fatídico Marco Temporal, no dia 30.5.2023, dia da morte decretada dos povos
tradicionais, dos grupos isolados (ainda mais rapidamente), dos povos da
floresta – que a habitam há milênios.
A
mesma desfaçatez de quem votou contra o Brasil, impondo a nossos parentes a
prova de sua existência, foi-nos imposta desde a formação da primeira
institucionalidade brasileira: da Igreja catequista ao Estado senhorial,
violador, matador.
Senhoras
e senhores, vejam que título fabuloso, mais revelador do que esse exemplo não
deve haver:
CARL. F. P. Von
Martius. O Estado do Direito entre os
autóctones do Brasil. Belo Horizonte : Editora Itatiaia; São Paulo :
Editora da Universidade de São Paulo, 1982.
Ao
contrário da imposição de se sofrer o genocídio, desde nossa “descoberta”, é o
sentido de comunidade pataxó vivida no TI Barra Velha, Aldeia mãe dos Pataxós.
A pesquisa de campo etnográfica, decolonial, construída coletivamente permite
viver esses saberes; aprende-se o sentido do coletivo, a coletividade, o
sentido da união, da reunião, do “muka mukau” (unir para reunir) para resistir,
insistir e principalmente existir.
A
experiência da “vida coletiva” vai muito além da barreira do concordar ou do
discordar, pois coletividade transborda respeito, coletividade visa o bem de
todos, é uma luta pelo mundo, uma luta pela sobrevivência, uma luta pela
natureza, pelos animais, pelos seres humanos; na verdade, é uma luta e um
conceito que deveria abranger a todos, sem preconceito, racismo ou segregações.
Coletividade
na cosmologia indígena significa a união, a reunião, em prol de TODOS,
incluindo, natureza, seres humanos e tudo mais que envolve o planeta Terra.
Talvez possamos então encontrar uma nova palavra para ressignificar a palavra
coletividade dentro da cosmologia indígena, porque a coletividade da maneira
que conhecemos é segregadora, racista, preconceituosa e vai contra o sentido de
união.
Não
teria como escrever um texto sobre o Marco Temporal, sem o Nós. O Nós aqui
representa diferentes campos de conhecimento, acadêmicos, da educação, do
direito, da antropologia, das diversas experiencias de vida. Mas, o Marco
temporal marca o nó górdio, o limite extremo, a última fronteira, entre a vida
e a morte – dos nossos parentes indígenas e, obviamente, da nossa.
Não
há Brasil sem os povos indígenas, não há Brasil sem a miscigenação – estupro
coletivo, na verdade, das mulheres negras e indígenas pelo homem branco. Sem
segurança efetiva aos povos indígenas, não haverá futuro, como não há segurança
de que se mantenha vivo o presente.
É
inadmissível o Mundo, o Brasil, não dar a oportunidade a nossas crianças de
entenderem e compreenderem o Mundo, o Universo como um todo; é absurdamente
inconstitucional não dar o direito a nossas crianças de compreenderem a
cosmologia indígena.
O
Marco Temporal não diz somente respeito às populações indígenas do nosso então
chamado Brasil, o Marco temporal não prejudica somente indígenas. A luta dos
indígenas é por todos nós, a luta diária pela preservação da natureza, a luta
diária pelo respeito e “muka mukau” (a união para reunião).
Hoje
precisamos de muitos Nós para curarmos a nós mesmos, herdeiros dos
colonizadores incivilizados, precisamos da reunião e da união, da coletividade
com o sentido mais profundo da palavra, para curarmos as dificuldades, para
estabelecermos outros entrelaçamentos dos fios, das cordas, dos cordões que,
neste momento, nos enforcam coletivamente. Devemos nos unir e não nos
distanciar, precisamos desfazer os nós de desunião, de preconceito, de racismo.
Hoje,
após a aprovação do Marco Temporal, deságua sobre Nós a perda de significados,
vivemos o luto, olhamos incrédulos a legalização do genocídio indígena. Até
quando o país ficará entregue, feliz, em ver a morte de crianças indígenas por
fome, sem casa, mortos a tiros ou gravemente adoentados (até morrerem) por
violência do colonizador embrutecido que não nos deixa apenas viver?
O
marco temporal facilita que terras que pertenciam aos indígenas, que protegiam
física e culturalmente povos originários, possam ser privatizadas e
comercializadas e, claro que, esta comercialização é uma resposta aos
interesses do setor ruralista, dos madeireiros, do agronegócio que polui rios,
mata a fauna e a flora, que traz mercúrio e veneno para nossa comida.
O
quanto você lutaria para deixar ao seu filho sua herança? Casa, carro,
dinheiro, bens materiais, isto é herança para maior parte das sociedades. Sabe
o que os povos estão tentando deixar de herança para SEUS filhos e também para
seus próprios? A vida!
Os
rios, os mares, a mata, a biodiversidade, o planeta que hoje luta para
sobreviver. Nossos*[1]
filhos, nossos netos, nosso planeta não se nutrirão de bens materiais, de
casas, de prédios, de dinheiro. Está na hora de lutarmos para desatarmos os nós
através de Nós mesmos.
Não
há como não citar o “O chamado pela Terra” apresentado pela articulação nacional
das mulheres indígenas guerreiras da ancestralidade (ANMIGA), que é uma
articulação de Mulheres indígenas de todos os biomas do Brasil, com saberes,
tradições, lutas que se somam e convergem, e junta mulheres mobilizadas pela
garantia do direito à vida dos povos indígenas.
“Vivemos
tempos duros, tempos de extremismo conservador, de ataques brutais aos
direitos, de desmonte da educação, da saúde, da ciência e da proteção
ambiental; em que fome, desemprego, violência e carestia avançam. Tempos em que
querem silenciar os tambores dos terreiros e o som dos maracás para que os
únicos sons audíveis sejam os das motosserras, das balas e do desalento”.
“Tempos
em que cada pedaço de floresta desmatado e queimado, cada termelétrica ligada e
cada poço de petróleo perfurado se traduzem – na linguagem do aquecimento
global – em secas mais severas, furacões mais intensos e ondas de calor
mortíferas. Tempos em que a ganância envenena o ar que respiramos, a comida que
comemos, a água que bebemos e o solo onde plantamos”.
Fiquem
certos, todos que nos leem, cada indígena que cair, que tombar morto pela
motosserra, pelas munições letais, pelos vírus do colonizador do século XXI,
assim como seus ancestrais há milênios, levará consigo a sabedoria de um povo
inteiro, levará consigo, para o esquecimento, todo o conhecimento que possa
haver numa biblioteca inteira.
Fiquemos
certos que, depois do banimento da vida da forma mais violenta possível, que só
o ato genocida pode comportar, a floresta em chamas será o último grito de
humanidade que ouviremos no Brasil.
Dia
30.5.2023, dia do Marco Temporal, Dia do genocídio legalizado, Dia da morte
decretada, institucionalizada, Dia da Tragédia Constitucional.
O
Brasil foi declarado morto no dia 30.5.2023.
Porque
não haverá sentido para nós, se perdemos o Nós-com-Eles.
Que
ninguém duvide, no dia 30.5.2023, o Brasil foi declarado oficialmente morto.
Referências
Chamado pela Terra | Mulheres
Indígenas no Poder.
Disponível em: <https://chamadopelaterra.org/>. Acesso em: 31 maio. 2023.
“O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenacao de Aperfeicoamento de Pessoal de Nivel Superior – Brasil (Capes) –
código de financiamento 001”. “This study was financed in part by the da
Coordenacao de Aperfeicoamento de Pessoal de Nivel Superior – Brasil (Capes) –
Finance code 001”
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