Terça-feira, 29 de agosto de 2023 - 13h21
Nosso
texto deveria se chamar apenas Marco Temporal – esse mesmo que tem um PL
(Projeto de Lei) em andamento e que será retomado no próximo dia 30, no Supremo
Tribunal Federal (STF).
Pois
bem, é na esperança de que a Casa da Lei das Leis cumpra sua mais sagrada
missão, guardar a Constituição Federal de 1988 (CF88), que escrevemos essa
nota; porém, já antevendo que a briga não será fácil, é necessário seguirmos
“atentos e fortes”.
Assim,
desde já e sempre, aguardemos e lutemos para que o Marco Temporal seja alvejado
pelo bom senso e não mais nos atormente com outro ameaço de retrocesso
moral/social, civilizatório e negacionista.
No
“frigir dos ovos”, o Marco Temporal atacará direitos fundamentais dos povos
indígenas e a territorialidade que já adquiriram ao longo de longas e imensas
lutas, retirando-os de suas casas.
O
Marco Temporal busca desconstituir todas as demarcações indígenas e de
quilombolas consentidas/conseguidas depois de 1988 – ano da promulgação da CF88[1].
O que,
em si, já é uma aberração (aberratio in legis), porquanto é uma absurda
afronta imoral à lógica constitucional, especialmente porque a Constituição
Cidadã não pode ser um guia do mal, sendo invocada como um “marco temporal” desmoralizante
dos pressupostos, princípios, direitos e das garantias constitucionais.
As autorias do Marco Temporal invocam a necessidade da “regulamentação”
(desnaturalização, invalidação) do artigo 231 da Carta Política de 1988.
Leiamos o Texto Constitucional:
Art. 231. São
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
seus bens.
§ 1º São
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições.
§ 2º As
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes.
§ 3º O
aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na
forma da lei.
§ 4º As
terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É
vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do
Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o
risco.
§ 6º São
nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo,
ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que
dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização
ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias
derivadas da ocupação de boa-fé[2]
(grifo nosso).
Frisemos que o conceito de Indigenato significa assegurar aos
povos indígenas o direito à terra como um direito originário, anterior à
formação do Estado, do direito e da própria sociedade nacional miscigenada.
Neste sentido, tratar-se-ia – mais do que direito fundamental – de real direito
originário, eivado pelo húmus da história secular e do direito enquanto fonte e
origem do tônus da vida.
O direito originário à terra sacralizada pela cultura que nos
constituiu a todos só reconhece o Nomos da Terra. Não há direito fora disso, nem inteligência artificial
permissiva a quem tente negar o óbvio. O direito dos povos originários
corresponde ao “espaço vital” deles – e nosso.
Parece
não haver confusão quanto ao português do que gravamos/negritamos acima e na
citação do artigo 231 da CF88: não deveria haver desinteligência quanto à sua
compreensão; não poderia haver tergiversação quanto ao entendimento solene dos
direitos ali assegurados, na condição de cláusula pétrea do Nomos da Terra.
Leia-se
novamente, por gentileza: “As terras de que trata
este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis” (artigo 231, § 4º, da
CF88). Afinal, os golpistas da Constituição também são detratores
da língua pátria.
Exatamente
por causa da tergiversação constitucional, a proposição de registro de
interpretação constitucional incrustrada no Marco Temporal se embrenha de forte
deturpação constitucional, verdadeira Transmutação Constitucional – notadamente
porque se utiliza de um tipo alvissareiro de interpretação para fins de
deturpação da Constituição.
Tratam
a Lei das Leis de 1988 como se fosse um Frankenstein, um monstro morto-vivo em
que os braços mutilam as pernas e as pernas chutam a cabeça, como se o
preâmbulo fosse o primeiro alvo de um cérebro ausente.
O caput,
o espírito da Constituição, da nossa Carta Política de 1988, não pode sofrer
investidas de interesses mesquinhos, destrutivos do meio ambiente, da cultura
nacional, dos povos e das etnias que são os verdadeiros criadores deste país.
Os
ancestrais dos “caras pálidas” que propõem o Marco Temporal já encontraram os
povos originários quando aqui chegaram. Muitos desses caras pálidas já vieram
com o intuito do butim, do saque, com a ânsia do enriquecimento rápido, com o
gatilho apontado para a morte – e isso nunca pôde ser legitimado, tanto quanto
não poderá ser legalizado.
Quando Ulysses Guimarães declarou que “Traidor da
Constituição é traidor da Pátria”, nada mais fez do que chamar nossa atenção
para o mais importante: a defesa da Constituição Federal de 1988, dos nossos
direitos e garantias fundamentais.
Que no dia do julgamento final do Marco Temporal os
traidores da Constituição e do povo brasileiro sejam lavados/levados daqui por
um imenso temporal civilizatório[3].
Que
tenhamos decência para entender e respeitar minimamente o que está inscrito na
Constituição Federal de 1998.
Além
disso, aos jurisconsultos negacionistas, diga-se: lembrem-se do Princípio da
Unicidade Constitucional e do Princípio do não-retrocesso moral/social – isto
é, se a parca educação lhes permitir a nobre lembrança dos Princípios Gerais do
Direito.
Concluindo:
o título do texto invoca a ocorrência de um grande temporal, e que recaiam
sobre nós chuvas de lógica, de moralidade pública e decência diante dos povos
originários.
Que os
trovões tragam o totem originário, que conduzam este imenso apelo pela “vida
originária”, e que nos rendamos ao direito de consciência – esse mesmo direito
que nos garante interpretarmos com validade aquilo que lemos (vemos ou ouvimos),
para que jamais nos submetamos às deturpações daqueles sempre motivados e interesseiros
por golpes e sabotagens.
Vinício Carrilho
Martinez
Professor da UFSCar/SP
[1] “A tese oposta ao marco temporal é a do “indigenato”. O
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) explica que o indigenato é uma tradição legislativa que entende que os povos
indígenas têm direito à terra como um direito originário, anterior à formação
do próprio Estado”. Acesso em 27.08.2023: https://www.fundobrasil.org.br/blog/entenda-o-marco-temporal-e-como-ele-afeta-os-direitos-dos-povos-indigenas/?gclid=Cj0KCQjw6KunBhDxARIsAKFUGs8luYE3DUE25YmFCJm1OvL95j5gitz2spLVIkh62w3FpE2iuUdVUmsaAp8wEALw_wcB.
[2] § 7º Não se
aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
[3]
Artigo 215 da CF88: “§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional” (grifo nosso).
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