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Vinício Carrilho

Minha família, minha vida - a exata noção de quem você é


Minha família, minha vida - a exata noção de quem você é - Gente de Opinião

Traços de família são sempre estranhos, tem muita história torta, ruim.

 

Arrisco-me com a minha, e a falar exclusivamente de mim, do ponto de vista de quem vivenciou essas narrações.

 

Algo que aprendi pequeno:

"Veja bem com quem você anda, com quem se relaciona". 

 

É certo e errado dizer isso: uma criança num morro qualquer, em qualquer periferia, não escapa do tráfico. Ou escapa, como vi acontecer com um interno da antiga FEBEM, ao se tornar Doutor em Educação um pouco antes de mim. Seria meu veterano pela FEUSP. Um dos poucos gênios que conheci. 

 

Quando vejo a perda de noção de grandeza (que quase não existe), lembro de muitas das grandezas que tive em vida. (Hoje, apenas algumas).

 

Meus quatro avós, imigrantes da Espanha, eram praticamente analfabetos. Nos critérios atuais seriam totalmente analfabetos, pouco sabendo além do próprio nome. 

 

No entanto, falarei pouco dos meus avós ou pais, até porque sempre escrevo. Mas tive a graça da Tia Maria, doutora em Piaget pela USP, quando o Brasil não sabia o que era a USP: ainda não sabe. Muito menos quem foi Piaget. 

 

Tive o Tio Jurandir, lanterninha de cinema (não existe mais), enquanto estudava para o vestibular de medicina. Cursou na Universidade Federal de Curitiba, antes de desbravar com seu hospital o interior do Paraná. Tive muitas histórias infanto-juvenis nesse hospital. 

 

Tive (tenho) a Tia Carmen, sem "Direito à escola", porque o mundo patriarcal não permitia. Uma guerreira que formou duas filhas: uma também Doutora em Educação, pela UNESP, a outra é Juíza de Direito (saída diretamente da escola pública). Fizemos Direito juntos.

 

Tenho muitos primos e primas, doutores e doutoras em muitas áreas, mas essas duas (Walkiria e Ângela) são fenomenais na vida.

 

Com duas tias Carmem, só pude aprender muito: uma queria a pragmática, a resolução dos problemas da vida, a outra queria ler meus contos juvenis (dos 15, 16 anos). E que a crítica roedora dos ratos já roeu.

 

Tive a convivência do Tio Paulo, rei da Editora Moderna, que me tirou de um passeio pra falar "da lógica capitalista do movimento Hippie".

Ninguém sequer imagina o que é isso, especialmente quando você (eu) tem 20 anos. 

 

Convivi, muito pouco, com o Velho Osório, o alfaiate comunista que produziu o Baiano Tietê.

Com carinho você o equipara à leitura de Vidas Secas, o grande ícone e marco da cultura brasileira. 

Pra mim, não existe livro mais límpido sobre o Brasil, do que a história da Baleia. Leia ambos pra entender minha emoção. 

 

Ouvi e conversei com Luís Carlos Prestes, na UNESP de Marília. 

 

Levei livro meu, sobre o golpe de 2016, diretamente para as mãos da Dilma. 

 

Fiz campanha com o Florestan Fernandes, na Constituinte de 1985, para ele mesmo. Fiz campanha dele e com ele, lado a lado, até quando tomava café na casa do meu avô paterno: o vô Thomás, imortalizado num dos netos. 

 

O pai da minha mãe não conheci, a mãe da minha mãe ficava comigo no Hospital do Servidor Público, em São Paulo. Até hoje não sei como tomava ônibus, sendo analfabeta. A mãe do meu pai adoeceu gravemente quando era criança, mas nunca deixou de fazer nada para os netos. O pai do meu pai andava quilômetros (a pé, é claro), todos os dias, pra me ver: engessado até o pescoço depois das cirurgias. E aplicava morfina, analfabeto, sem nenhum conhecimento de enfermagem, nos seus vizinhos que agonizavam com algum câncer brutal. Muita gente viveu muito além do seu tempo, sem SUS, graças ao meu avô.

 

Ouvi Paulo Freire na USP, pouco antes de falecer. Tive aulas de lógica com José Mário Pires Azanha – quem conheceu sabe onde chegava seu raciocínio. Um mestre como não se vê mais. 

 

Estive numa mesa redonda com Octávio Ianni: o texto dele era O príncipe eletrônico (põe no Google), o meu artigo (que virou livreto) tinha (tem) o acrônimo de A rainha virtual. Óbvio que fui inspirado no príncipe da sociologia (Ianni é o verdadeiro, não esse outro).

O ápice disso foi quando ele me pediu aquele rascunho. Com 30 anos você nem sonha que isso possa lhe ocorrer. E aconteceu, porque acontece. 

 

Fiz graduação e mestrado com Tulo Vigevani. Sua grandeza é equiparada às relações internacionais do Brasil. O Google vai completando o nome, por você. 

 

Convivo faz bem uns 30 anos com Marcos Del Roio, da graduação à atual supervisão de pós-doutorado (e mais três, anteriores). É apenas o maior especialista em Gramsci do Brasil. Alguém que sempre leu, ouviu, concordou ou corrigiu, meus devaneios liberais-democráticos: às vezes mais republicanos, às vezes mais socialistas. Muitas vezes anárquicos. 

 

Tive um dos maiores prêmios que alguém pode almejar: fui aluno e convivi no doutorado, fortemente impactado, com Maria Victoria Benevides. Não tem como apresentar, mesmo dizendo que é uma das fundadoras do PT e enorme referência na Ciência Política. Uma das pessoas mais inteligentes que conheci ou tive notícia, temperada com doçura, elegância e humanismo. 

 

Porém, sempre lembrarei que todos nós, crianças, íamos brincar numa fazenda próxima da casa da Tia Carmen: a mãe da Juíza de Direito (ou magistrada, como querem os fleumáticos sem história relevante pra contar).

 

Sempre falo que minha família é diferente, e esta foi uma breve história do tempo dos antigos. 

 

Os que vieram depois, nós, primos e primas, fica pra outro dia, até porque só cumprimos com nossas obrigações. 

Ninguém fez nada além do óbvio, aquilo tudo que se esperava e planejava com uma geração de antecedência. 

 

Com esse histórico, onde você acha que nós estudamos (salvo exceções), senão na escola pública?

 

Nesta família não cabe soberba, muito menos pra mim, porque posso contar um, em um milhão de dedos, quem teve todos os privilégios que a vida me deu. 

 

Sabe a história do pobre com dignidade? É isso que nos fez.

 

Além do mais, quando se convive com gigantes aprende-se a ver o mundo mais alto. 

 

Foi Newton quem falou isso!?

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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