Quarta-feira, 1 de março de 2023 - 17h29
Traços de família são
sempre estranhos, tem muita história torta, ruim.
Arrisco-me com a
minha, e a falar exclusivamente de mim, do ponto de vista de quem vivenciou
essas narrações.
Algo que aprendi
pequeno:
"Veja bem com
quem você anda, com quem se relaciona".
É certo e errado
dizer isso: uma criança num morro qualquer, em qualquer periferia, não escapa
do tráfico. Ou escapa, como vi acontecer com um interno da antiga FEBEM, ao se
tornar Doutor em Educação um pouco antes de mim. Seria meu veterano pela FEUSP.
Um dos poucos gênios que conheci.
Quando vejo a perda
de noção de grandeza (que quase não existe), lembro de muitas das grandezas que
tive em vida. (Hoje, apenas algumas).
Meus quatro avós,
imigrantes da Espanha, eram praticamente analfabetos. Nos critérios atuais
seriam totalmente analfabetos, pouco sabendo além do próprio nome.
No entanto, falarei pouco
dos meus avós ou pais, até porque sempre escrevo. Mas tive a graça da Tia Maria,
doutora em Piaget pela USP, quando o Brasil não sabia o que era a USP: ainda
não sabe. Muito menos quem foi Piaget.
Tive o Tio Jurandir,
lanterninha de cinema (não existe mais), enquanto estudava para o vestibular de
medicina. Cursou na Universidade Federal de Curitiba, antes de desbravar com
seu hospital o interior do Paraná. Tive muitas histórias infanto-juvenis nesse
hospital.
Tive (tenho) a Tia
Carmen, sem "Direito à escola", porque o mundo patriarcal não
permitia. Uma guerreira que formou duas filhas: uma também Doutora em Educação,
pela UNESP, a outra é Juíza de Direito (saída diretamente da escola pública).
Fizemos Direito juntos.
Tenho muitos primos e
primas, doutores e doutoras em muitas áreas, mas essas duas (Walkiria e Ângela)
são fenomenais na vida.
Com duas tias Carmem,
só pude aprender muito: uma queria a pragmática, a resolução dos problemas da
vida, a outra queria ler meus contos juvenis (dos 15, 16 anos). E que a crítica
roedora dos ratos já roeu.
Tive a convivência do
Tio Paulo, rei da Editora Moderna, que me tirou de um passeio pra falar
"da lógica capitalista do movimento Hippie".
Ninguém sequer
imagina o que é isso, especialmente quando você (eu) tem 20 anos.
Convivi, muito pouco,
com o Velho Osório, o alfaiate comunista que produziu o Baiano Tietê.
Com carinho você o
equipara à leitura de Vidas Secas, o grande ícone e marco da cultura
brasileira.
Pra mim, não existe
livro mais límpido sobre o Brasil, do que a história da Baleia. Leia ambos pra
entender minha emoção.
Ouvi e conversei com
Luís Carlos Prestes, na UNESP de Marília.
Levei livro meu,
sobre o golpe de 2016, diretamente para as mãos da Dilma.
Fiz campanha com o
Florestan Fernandes, na Constituinte de 1985, para ele mesmo. Fiz campanha dele
e com ele, lado a lado, até quando tomava café na casa do meu avô paterno: o vô
Thomás, imortalizado num dos netos.
O pai da minha mãe
não conheci, a mãe da minha mãe ficava comigo no Hospital do Servidor Público,
em São Paulo. Até hoje não sei como tomava ônibus, sendo analfabeta. A mãe do
meu pai adoeceu gravemente quando era criança, mas nunca deixou de fazer nada
para os netos. O pai do meu pai andava quilômetros (a pé, é claro), todos os
dias, pra me ver: engessado até o pescoço depois das cirurgias. E aplicava
morfina, analfabeto, sem nenhum conhecimento de enfermagem, nos seus vizinhos
que agonizavam com algum câncer brutal. Muita gente viveu muito além do seu
tempo, sem SUS, graças ao meu avô.
Ouvi Paulo Freire na
USP, pouco antes de falecer. Tive aulas de lógica com José Mário Pires Azanha –
quem conheceu sabe onde chegava seu raciocínio. Um mestre como não se vê
mais.
Estive numa mesa
redonda com Octávio Ianni: o texto dele era O príncipe eletrônico (põe no
Google), o meu artigo (que virou livreto) tinha (tem) o acrônimo de A rainha
virtual. Óbvio que fui inspirado no príncipe da sociologia (Ianni é o
verdadeiro, não esse outro).
O ápice disso foi
quando ele me pediu aquele rascunho. Com 30 anos você nem sonha que isso possa
lhe ocorrer. E aconteceu, porque acontece.
Fiz graduação e
mestrado com Tulo Vigevani. Sua grandeza é equiparada às relações
internacionais do Brasil. O Google vai completando o nome, por você.
Convivo faz bem uns
30 anos com Marcos Del Roio, da graduação à atual supervisão de pós-doutorado
(e mais três, anteriores). É apenas o maior especialista em Gramsci do Brasil.
Alguém que sempre leu, ouviu, concordou ou corrigiu, meus devaneios
liberais-democráticos: às vezes mais republicanos, às vezes mais socialistas.
Muitas vezes anárquicos.
Tive um dos maiores
prêmios que alguém pode almejar: fui aluno e convivi no doutorado, fortemente
impactado, com Maria Victoria Benevides. Não tem como apresentar, mesmo dizendo
que é uma das fundadoras do PT e enorme referência na Ciência Política. Uma das
pessoas mais inteligentes que conheci ou tive notícia, temperada com doçura,
elegância e humanismo.
Porém, sempre
lembrarei que todos nós, crianças, íamos brincar numa fazenda próxima da casa
da Tia Carmen: a mãe da Juíza de Direito (ou magistrada, como querem os
fleumáticos sem história relevante pra contar).
Sempre falo que minha
família é diferente, e esta foi uma breve história do tempo dos antigos.
Os que vieram depois,
nós, primos e primas, fica pra outro dia, até porque só cumprimos com nossas
obrigações.
Ninguém fez nada além
do óbvio, aquilo tudo que se esperava e planejava com uma geração de
antecedência.
Com esse histórico,
onde você acha que nós estudamos (salvo exceções), senão na escola pública?
Nesta família não
cabe soberba, muito menos pra mim, porque posso contar um, em um milhão de
dedos, quem teve todos os privilégios que a vida me deu.
Sabe a história do
pobre com dignidade? É isso que nos fez.
Além do mais, quando
se convive com gigantes aprende-se a ver o mundo mais alto.
Foi Newton quem falou isso!?
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