Sexta-feira, 10 de novembro de 2023 - 14h12
Vinício Carrilho Martinez
Professor Associado IV da Universidade Federal de
São Carlos
Tainá Reis
Doutora em sociologia pela Universidade Federal de
São Carlos
Já leram Musachi[1]?
À primeira vista, Musachi Musachi traz a Solidão como resposta:
Prudência para ter equilíbrio, concentração e dedicação. Isso seria o que se
denominou de "super-ação". Também traz o sentido do
"equilíbrio social", quando não se chocam em volume extenso o
"super ego" (a vaidade exponencial), que ultrapassa o necessário
"superego" (controle social que também não tenha efeito castrador:
"cancelamento de todos que "não aprovamos"). Portanto, ainda que
limitados nesta primeira investida, essa Solidão não é um fim em si mesmo, mas
tão-somente um meio.
Procuraremos um meio-termo, o equilíbrio entre a técnica e a
ética, a responsabilidade diante da racionalidade, a paz no lugar da guerra, o
diálogo ao invés dos gritos da morte, a democracia e a civilidade ao contrário
das cortes fascistas – para ocupar nossos pensamentos e ações acerca da
Palestina e do Brasil.
Trata-se, ainda hoje, da luta contínua contra esse Fascismo que
nasceu com o faschio – um ramo simbólico de poder na Roma antiga –, mas,
também com as coortes de soldados e de gladiadores, sob o comando dos
centuriões e seus séquitos sedentos de sangue humano[2]. O Conde
Vlad, inspirador do Drácula, não faria feio – mais ainda quando vemos
hospitais, doentes, idosos, crianças, civis inocentes serem bombardeados por
Israel.
Contra tudo isso sempre houve
um chamamento ao juízo, pelo caminho da Prudência. Este caminho também seria o Bushidô
para Musachi. Porém, o melhor espadachim japonês de todos os tempos não só
conhecia a “arte da guerra”, como afinava-se na filosofia da vida. O que
chamamos de Prudência. Afinal, muito antes de lutar (a política também é luta)
é preciso sabedoria para viver, conviver.
Os Códigos da Prudência[3]
Este espírito de
total entrega e obediência cega a tradições e a seus senhores é o que restou do
mundo antigo e que mais se aproximou, temporalmente falando, de nossa
modernidade. O Xogunato, no Japão, vigoraria até a véspera do século XX[4] — xogum era o verdadeiro
governante no Japão antigo, acumulando os cargos de chefe político e os poderes
de líder militar (shōgun =
general). O representante maior dessa fase, defesa das tradições milenares e
passagem à ocidentalização, é o japonês Musashi Miyamoto e seu extenso trabalho O livro de Cinco Anéis. Porém, no caso
deste texto, veremos apenas um resumo da obra que possa consubstanciar nosso
argumento.
Musashi Miyamoto reapresenta o fim de um ciclo da ética e
da tradição que movimentaram o “desencantamento do mundo” no Oriente. Depois
disso, a melhor representação viria com os gregos clássicos (ainda que o Xogunato
existisse há pouco tempo, se comparado aos gregos). É de se frisar que,
enquanto Musashi escreve sobre a “moral do samurai” (certamente, o que havia de
mais sagrado e tradicional no Japão Feudal), a Razão de Estado se multiplicava
como ideologia e prática expansionista na modernização da Europa Ocidental.
Musashi (1584-1645), o mais famoso samurai do Japão, passou
a vida dedicando-se ao Caminho da Estratégia (Ni Tem Ichi Ryu). No Xintoísmo, aprendeu a religião do esforço
contínuo. Esta noção de Caminho é
originária das bases confucionistas do Período Tokugawa e significa o
“itinerário de vida do guerreiro”, uma “vereda para Deus”. Como samurai, venceu
e matou mais de 60 adversários, entre 13 e 28 ou 29 anos. Aos 30 anos reviu
este “passado de violência”, mas só compreendeu o Caminho da Estratégia
aos 50 anos. Portanto, dos 30 aos 50 anos, passou estudando. Para Musashi: “A
estratégia é o ofício do guerreiro [...] Fala-se que o guerreiro deve seguir o
Caminho duplo da pena e da espada e que deve ter gosto por ambos os caminhos” (Musachi,
2002, p. 167). Como samurai, era adepto da filosofia do Bushidô, ou seja, como está pronto a morrer a qualquer instante, o
samurai liberta-se dos sentimentos mundanos, “valorizando a vida de modo
intenso”. O Caminho é a estratégia:
O guerreiro tem uma
posição própria, pois busca percorrer o Caminho da Estratégia, que é o estudo
de como superar o homem [...] mas, como prática benéfica, ela não se limita à
esgrima [...] O homem usa equipamentos
para vender seu próprio eu [...] Alguém disse certa vez que “A estratégia
imatura é causa de dor” e isso é verdadeiro (Musachi, 2002, p. 168 – grifo
nosso).
É expresso como a
tradição pressente a mercantilização crescente da época, a alienação, a “perda da aura”, em uma frase simples como essa: O homem usa equipamentos para vender seu
próprio eu. Entretanto, mesmo diante de tão grave perigo, Musashi destaca
uma engenharia e simetria entre a arte, o trabalho e a luta (afinal, são
expressões do mesmo “gênio” humano): “O carpinteiro usa uma planta-mestra do
prédio, e o Caminho da estratégia é similar ao do carpinteiro, pois também usa
um plano de campanha [...] O mestre é uma agulha, o discípulo a linha. É
preciso praticar sem descanso [...] Como o soldado, o carpinteiro afia suas
ferramentas, seus instrumentos de trabalho” (Musachi, 2002, p. 169-170).
Acentua-se aqui o trinômio do trabalho, do cuidado e do zelo. O Caminho, por
sua vez, é narrado em cinco livros:
Terra, Água, Fogo,
Vento e Nada [...] Como se parece com uma estrada marcada no chão, o primeiro
livro se chama Livro da Terra [...] Por comparação, o espírito é semelhante à
água. A água adota a forma de seu receptáculo, às vezes, é uma gota e às vezes
é mar revolto [...] O espírito para vencer um oponente é o mesmo para abater
dez milhões deles [...] O terceiro é o Livro do Fogo [...] O espírito do fogo é
feroz, seja ele pequeno seja grande; o mesmo acontece com as batalhas [...] Por
vento refiro-me a tradições antigas e tradições familiares de estratégias do
mundo [...] É difícil alguém conhecer-se
se não conhecem os outros [...] Por Nada entendo o que não tem princípio e
não tem fim[5]
[...] Quando tomamos conhecimento da força da natureza, aprendendo o ritmo de
qualquer situação, tornamo-nos capazes de abater o inimigo, golpeando-o
naturalmente (Musachi, 2002, p. 171-172 – grifos nossos).
É impossível não
destacar a sensibilidade do samurai para o que hoje chamamos de luta pelo
reconhecimento: É difícil alguém
conhecer-se se não conhece os outros. Mesmo que empregue isto de forma
instrumental, para abater seu inimigo, como no emprego da técnica das duas
espadas (da escola de Nito Ichi Ryu):
“Esta é a verdade: como arriscam a vida, é indispensável que usem ao máximo os
armamentos disponíveis” (Musachi, 2002, p. 173). Como não é correto não-reagir
na luta pela vida, nota-se uma manipulação da razão. Aliás, vê-se como a luta
por sobrevivência condiciona a luta pelo reconhecimento. Além disso, o Caminho
é um eterno conhecimento, uma forma de Educação Permanente: “De uma coisa,
aprenda mil coisas [...] Dominar a virtude da espada longa, por outro lado, é
governar ao mundo e a si mesmo, e assim a espada longa é a base da estratégia
[...] O homem tem de burilar o Caminho que escolheu” (Musachi, 2002, p. 174).
Não há inatividade, como não há misticismo de quem seja
portador de um dom especial, superior. O caminho de todos os Caminhos é a
educação: estudar mil coisas, para governar com estratégia. Como na arte de
governar, na política, necessita-se de uma combinação entre estratégia,
prudência e conhecimento (aprofundado, atualizado). Na Antiguidade, este
conjunto de habilidades articuladas era chamado de techné. Para os gregos clássicos, técnica era um conjunto amplo —
pode-se dizer que no Mito de Prometeu
a descoberta, o conhecimento, o saber necessário ao domínio do fogo e seu
emprego na manufatura de ferramentas[6], tem o mesmo sentido dado
por nós atualmente às mais fantásticas descobertas científicas e tecnológicas.
Na Idade Moderna, ganharam
destaque as técnicas mecânicas e incorporaram-se outras concepções técnicas (o
como, o “saber-fazer”, o método aplicado)
ao saber (agora como ciência). Nessa época, chegou-se a considerar que “o saber
é fundamentalmente técnico”. Como aplicação, podemos dizer que a tecnologia
(como conjunto complexo de técnicas,
artes, ofícios e saberes elaborados e/ou aplicados) é um trabalho exercido
sobre a natureza e sobre os homens; quer seja a bomba destrutiva da vida de
crianças, quer seja o aparelho respiratório dos feridos por essa mesma bomba.
Assim, seguindo-se a antropologia da técnica (para o passado e presente) e a
epistemologia da tecnologia (para o presente e futuro), teríamos que: a
tecnologia é a arte que transforma o mundo natural em realidades artificiais[7].
Hoje, no entanto, após tantos
desvios dos maus usos, é lícito dizer
que ainda precisamos elaborar o mapa conceitual que deve cercar esse mesmo conjunto complexo da técnica e da
tecnologia, bem como da ciência. Para os gregos, a cópia também era
desprezível. A cópia é um embuste de vida curta, pois nem se tem conhecimento e
precisão, nem há avaliação adequada do uso dos meios: “Tem-se hora e lugar para
a utilização das armas [...] Você não deve ter uma arma favorita [...] Não é
conveniente copiar os outros, e sim utilizar as armas que consegue dominar
apropriadamente” (Musachi, 2002, p. 175). As técnicas vêm desse aprimoramento
da própria consciência e não o contrário. Não há batalha que não se pareça com
a luta pela vida — todas exigem dedicação intensiva, superação e nisto estão as
“virtudes”:
1. Não pense desonestamente. 2. O Caminho está no
treinamento. 3. Familiarize-se com todas as artes. 4. Conheça o Caminho de
todas as profissões. 5. Nos assuntos materiais, aprenda a distinguir ganho de
perda. 6. Desenvolva o julgamento intuitivo e a compreensão de tudo. 7. Perceba
as coisas que não podem ser vistas. 8. Dê atenção às coisas triviais. 9. Não
faça nada que não sirva para nada (Musachi, 2002, p. 176-177).
É uma forma antecipada de utilitarismo, mas como utilitarismo
em busca de sentido e não de resultados diretos, não é imediatismo. Mais do que
curioso, é revelador de que a escolha do Caminho é pura “vocação”, paixão:
“Acima de tudo, para começar, é
necessário, colocar seu coração na estratégia e encarar firmemente o
Caminho” (Musachi, 2002, p. 177 – grifo nosso. Por isso, a cópia, por mais bem
intencionada que seja, é sempre imperfeita, porque não expande o conhecimento,
o improviso e a inovação: “Não se limite a ler, memorizar ou imitar, pois, para
conseguir perceber o princípio em seu íntimo, estude dedicadamente” (Musachi,
2002, p. 178). Estudar também implica em auto-conhecimento, com percepção,
perspectiva, postura, “visão”, posicionamento diante dos fatos da vida:
Fique numa postura de
cabeça erguida, nem curvada para a frente nem olhando para cima, nem virada
para o lado. Sua testa e o espaço entre seus olhos não devem ficar franzidos
[...] Em todas as formas de estratégia, é necessário manter a postura de
combate na vida cotidiana e que se faça da postura diária sua postura de
combate (Musachi, 2002, p. 179).
O olhar duplo da percepção e da visão deve ter abertura e
amplitude: “É importante, na estratégia, ser capaz de ver de ambos os lados sem
movimentar os olhos [...] use esse olhar na vida diária, e não o modifique,
aconteça o que acontecer” (Musachi, 2002, p. 179). Esta “visão” trará melhor
condição para lutar, pois a arte da luta está na temperança, no equilíbrio, na
harmonia entre flexibilidade e força: “A rigidez significa que as mãos ficam
‘mortas’. A flexibilidade dá vida às mãos[8]” (Musachi, 2002, p. 180).
A vitória está na razão: “A espada tem de voltar sempre de maneira racional...”
(Musachi, 2002, p. 181). A luta é uma “racionalização da aprendizagem” — além
de sincronia, tempo, ritmo e o principal: objetivo. A objetividade está em paralelo (harmonia ou distonia), mas uma vez
em movimento, não deve cessar: “Mais do que tudo, é fundamental pensar em
manter o movimento até derrotar o inimigo [...] ‘Num Só Tempo’ significa que,
após encurralar o inimigo, você deverá golpeá-lo da maneira mais rápida e
direta possível” (Musachi, 2002, p. 185). Toda reação é uma nova ação ou, no
fundo, a continuidade da ação inaugural. Para enfrentar muitos, tome posição
ofensiva, mas aguarde o ataque e enfrente quem se mover primeiro. De todo modo,
é preciso haver paciência, determinação, treinamento (“espírito de combate”). O
primeiro passo do Caminho é estudar insistentemente; o segundo é vencer a você
mesmo, ou melhor, “quem você foi ontem”.
É preciso uma espécie de “dedicação exclusiva para o poder
“miraculoso”. Seguindo-se uma boa estratégia, há vários meios e muito
treinamento para se matar os inimigos: “a
luta pela sobrevivência, a descoberta do significado da vida e da morte, o
aprendizado do Caminho da Espada, a mensuração da força dos ataques...” (Musachi,
2002, p. 193 – grifo nosso). Sem dúvida, é um longo aprendizado para a “luta
pela sobrevivência”. Não há preceito, sem método; mas isso não implica que haja
um método superior, um tipo de “método mais metódico”. Musashi sugere uma
combinação de métodos, adaptando-os às condições e necessidades: do método ao
controle e daí à vitória.
Afinal, na luta pela sobrevivência, não há complacência: “O
espírito é o de derrotar até as entranhas do inimigo. Isso tudo é Ken No Sem [...] Atue com rapidez e
golpeie com força. Este é o Tai No Sen”
(Musachi, 2002, p. 195-196). Agora, o melhor método é o uso imperativo da
inteligência; quando se aplica o bom senso sobre o senso comum ou nas
obviedades, o resultado é espantosamente objetivo, produtivo, benéfico e
simples: “O fundamental, na estratégia, é obstruir as ações úteis do inimigo e
deixá-lo à vontade para executar as ações inúteis” (Musachi, 2002, p. 196).
Contudo, o principal é estar aberto à grandeza de sentimentos e de valores,
afastando-se da pequenez: “Renego o espírito estreito e preconceituoso na minha
doutrina. Estude bem isso” (Musachi, 2002, p. 208). Renegue as
irracionalidades, “despreze o que é insignificante”. Como samurai, dedicado à
luta, sempre pronto para morrer, sabia que o segredo não era a morte: “Para
começar, matar não é o Caminho da humanidade. Matar é a mesma coisa para
pessoas que sabem lutar e para as que não sabem” (Musachi, 2002, p. 210). Viver
é lutar; matar é só matar – não precisa de arte. O que fez Musashi mudar o rumo
da vida foi ter (re)descoberto o próprio “sentido da vida”, após passar metade
de sua existência envolvido com a morte.
É este sentido para vida, em total substituição à compulsão pela morte, que retemos da sabedoria bushidô de Miyamoto Musachi –, pois, se a guerra é a arte da sobrevivência e da imposição, a política é arte da negociação e da afirmação. A arte da Prudência de Musachi ecoa no reconhecimento de algo absurdamente simples e muito óbvio de se entender, qual seja, na guerra não há vida. Somente os tolos e os senhores da guerra não veem desse modo.
Referências
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Os Códigos da Prudência. Pesquisa de Pós-Doutorado em
Ciências Políticas. UNESP/Marília, SP: [s.n.], 2011.
MUSASHI,
Miyamoto. O livro de cinco anéis. IN : Sábios guerreiros : A arte da
guerra – O livro de Mestre Shang – Um livro de Cinco Anéis – Primeiros passos
do guerreiro. São Paulo : Editora Claridade, 2004.
[1] Aqui há uma referência
em vídeo. Contudo, não procuremos a maior perfeição acadêmica, seu intuito
(alcançado) é relacionar a vida moderna com os vários símbolos, sentidos e
sentimentos que já perdemos, ao abdicarmos da Prudência: https://youtu.be/5nwY1eoe0dY?si=v_8Gx0R5Y6TjQ-t1. Acesso em 09/10/2023.
[2] Contra tudo e contra
todos, havia Spartacus: o rebelde gladiador romano. Spartacus, em
luta de escravos e gladiadores pela vida vivida com liberdade, viria se somar a
dezenas, milhares de outras lutas contra a escravidão. Toda luta contra a
negação dos direitos, especialmente contra a servidão e a escravidão, está no
pórtico das lutas políticas. Toda luta política contra a nulidade social é um
clássico de todos nós.
[3] Esta parte da reflexão nos remete a uma
pesquisa de pós-doutorado, homônima: Os códigos da Prudência (Martinez, 2011).
[4] Os japoneses afirmam que Saigo Takamori
foi o derradeiro samurai, quando aos 50 anos, em 1877, teria lutado até a morte
para preservar a ética do Bushidô (“o
código do guerreiro”) e que estava prestes a desaparecer por causa das reformas
ocidentais adotadas pela Restauração Meiji (1867-1912).
[5] No budismo, Nada ou
Vazio indicam a “natureza ilusória das coisas terrenas”. Portanto, não é vazio
como “ausência de significados”.
[6] Os gregos dominavam bem
a metalurgia (como herança cultural de outros povos, a exemplo dos Hititas): “a
arte de moldar e de ajustar os metais”. Tornar
o metal dócil.
[7] Esta realidade ainda pode ou não ser tratada
como ficção, pois a realidade virtual
não é ficcional.
[8] Refere-se
explicitamente ao uso da Katana, a
tradicional espada samurai.
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