Terça-feira, 7 de novembro de 2023 - 08h10
Fiat pereat mundus
Kant
Que pereçam todos os velhacos jacobinos deste
mundo
Vinicio
Carrilho Martinez[1]
Lucas
Gonçalves da Gama[2]
Os ganchos com a realidade, macro e micro, são a guerra Israel x Gaza e
os ataques de morte nas escolas públicas brasileiras.
Nós crescemos e estudamos esperando – ou para aprender – que o Estado, o
Poder Público, devem fazer políticas públicas destinadas à justiça, à
pacificação social, à elevação dos níveis de sociabilidade. Estudamos que os
freios adequados ao próprio Estado, enquanto instituição privilegiada,
inaugural das demais instituições, são decorrentes do Estado de Direito – e que
este Estado de Direito é composto pela separação dos poderes, pelos direitos
fundamentais e pelo ideal de República.
Porém, a realidade do dia a dia, salvo para pessoas abnegadas,
privilegiadas e polpadas dos efeitos devastadores da luta de classes, mostra
que isso que descrevemos é um mito – isso corresponde ao Mito do Estado (de
Direito) que vem se formando desde o final do século XIX, com a equiparação de
um direito constitucional que, na tese do mito, deveria ser seguido pelo
próprio Estado.
Uma regra desse mito secular diz respeito exatamente ao que estamos
falando, decorre de uma sentença institucional: “suportas a lei que criastes”.
Isto é, se o Estado cria uma lei para os cidadãos deve, essa lei, ser observada
e cobrada do Estado, para que não seja um “super cidadão” acima dos interesses
sociais.
Quando essa regra se desfaz, é quebrada, muitas são as consequências,
como o aumento da criminalidade, dos desafios à capacidade de o Estado impor
regras gerais, da descrença e desconfiança frente ao Estado, ao Poder Público.
Em poucas linhas, pode-se dizer que a falência desse Mito do Estado equivale à
falência de uma racionalidade: desamparado, largado, o indivíduo começa a agir
por conta própria, muito próximo do que Hobbes chamou de estado de guerra, de
todos contra todos, no Leviatã. E, de outro modo, livre para não cumprir suas
próprias regras ou indiferente às regras postas pelos outros Estados, “nosso”
Estado passa a agir sem limites, sem a subsunção às cordas de equilíbrio e
contrapesos; isto é, torna-se um Estado arbitrário, autoritário, ditatorial,
monocrático, autocrático ou totalitário.
A quebra, a ruptura do Mito do Estado – que é o mito da justiça –
provoca injustiças e essas injustiças alimentam outra série de reações de
injustiça. Racionalmente, a humanidade não se deu um Estado de presente para
lhe provocar severas injustiças; porém, sem a crença no direito justo
(instrumental equivalente à justiça), o Estado injusto se sente ainda mais
livre para agir e de modo cada vez mais injusto.
Esse ideal da injustiça,
paradoxalmente, eleva-se em contornos de racionalidade – planificação e
Banalização do Mal, como disse Arendt –, à medida em que decresce o Mito do
Estado de Direito. Historicamente, os gregos definiram o aparato estatal – de
certa forma maior do que a ideia de Poder Público (até porque o povo não
passava de 7% da população) – como um mito: aquele descrito no Banquete dos
Deuses.
Sabemos que só se sentam com os deuses as pessoas muito bem avaliadas,
para os gregos a exclusividade de participar da política era masculina. A ideia
de Urstaat, como Estado original,
primordial, seria descoberta depois, pela antropologia política, junto aos
Estados sumérios.
Neste sentido apontado no
texto, quando o Estado perde
o ideal de justiça (mítico) acaba por gerar um mito ou misto de Estado
totalitário, autoritário, e que ainda se chama de Estado de não-Direito ou
não-Estado.
Sem
responsabilidade pela justiça (ou injustiça), o Estado declara guerra para
efeitos de dizimação. Toda
guerra trata de poder e ódio. Porém, se é possível usar uma redundância
entre os termos, diríamos que a guerra Israel X Gaza é uma "guerra de
ódio", de extermínio completo. Lembra uma "Guerra de Solução
Final". Aliás, muitas ações e estratégias remontam à pior experiência
humana no quesito "guerra de extermínio".
No limite do extremo, o mito do Estado alimenta uma terrível confusão
entre "justiça" (redenção frente ao inimigo) e genocídio
planejado. Parafraseando Kant em “À paz perpétua”, se é exigido o
consentimento dos cidadãos para ter uma decisão de se iniciar ou não um
conflito (no caso Israel x Gaza o apoio já se torna consentimento), então
naturalmente, é necessário que se reflita muito acerca disso, pois uma vez
começada, todos terão que lidar com as mazelas advindas da decisão, o que
tornará (em caso de adesão a conflitos) a paz que virá posteriormente muito
mais amarga. Sem contar que, no mundo multipolar, as reações devem ser muito
mais sérias – ou deveriam, se pensarmos que o Conselho de Segurança da ONU
(Organização das Nações Unidas), sob um péssimo desenho de “vetos”, é incapaz
de barrar a guerra de extermínio em Gaza.
É importante ter claro que a guerra não é a suspensão da paz; a guerra
equivale à falência da diplomacia, da política, da negociação. A paz, por sua
vez, pode ser entendida como a preparação da guerra, enquanto a guerra é
equivalente da negação da vida.
Extratores da paz são expositores da
guerra. São os dois lados da mesma moeda, na mesma fronteira em que a vida se
extingue. Se a guerra não é o contrário da paz (só um armistício), a
guerra é a negação da vida. Sem essa compreensão básica, não se sabe o que
é humanidade. Há uma longa filosofia pra isso, mas começa com Kant, na Paz
perpétua. E não há paz quando há torcida organizada em torno da guerra – é
óbvio.
Há quem goste ou cultue monstros, nós não gostamos de
monstros, não importa o lado em que estejam.
Neste limiar, as ações do sionismo de Estado em Gaza são equivalentes ao
Estado Nazista – enquanto forma-Estado. Por sua vez, a violência escolar
esconde (ou revela) o absurdo do desamparo público.
Ambos, subverteram por completo a mística de que pode haver alguma
justiça no aparelho repressivo e ideológico do Estado. Ainda que, à
primeira vista, soe como completo paradoxo.
Na ausência do Mito do Estado de Direito, na crença no direito,
predomina o que também se chama de Razão de Estado ou "última Razão dos
Reis”, ou direito de matar em nome (em razão) de uma verdade absoluta. Guerras
Santas ou tribunais do crime organizado tem algo em comum.
Portanto, se fizermos alguma relação entre a violência praticada nos
ambientes escolares e na guerra, em Gaza, por exemplo, ainda precisamos de
outras balizas. Pois, cabe a ressalva de que na Gaza ocupada vigora um Estado
de Exceção mantido por um terrorismo de Estado. E, apesar disso, a
violência do Hamas (igualmente terrorista) não pode ser confundida com o desamparo
do estudante que atira contra seus colegas de turma. Lembrando-se que
alguns desses jovens são seguidores de movimentos neonazistas, o paradoxo se
amplia porque muitos são vítimas da ausência de Estado e da tentativa de
substituí-lo por uma força altamente disruptiva, desconexa da humanidade – que
é o neonazismo.
Portanto,
entre a guerra e o desamparo estatal, há alguma convergência, mas também
distanciamento: num caso, retrata-se o abandono institucional, no outro há uma
guerra, com a imposição da violência institucionalizada. No caso da
violência escolar vigora o “não-Estado”, como queria Norberto Bobbio, no outro
extremo, da guerra Israel x Gaza, vige um super Estado, um Estado de Guerra sob
uma Lei Marcial, que só obriga as pessoas, não conferindo-se limites ao
“direito de guerrear”.
Desse
modo, a violência nas escolas está para o não-Estado, assim como a violência na
guerra está para o super-Estado, o Estado de Exceção e a tentativa de
legitimação dos crimes contra a humanidade – o caso da guerra seria exemplar
para demonstrar como a dominação racional-legal se transformou em exceção (exceptio)
a serviço de um dominus.
Numa ponta da equação, há um Estado sem controle algum, no outro (das
escolas) há uma ausência total de institucionalidades que deveriam se guiar
pela racionalidade da pacificação social.
No geral,
o avesso do Mito do Estado é a sua realidade, nua e crua, e cruel. Em comum, os
dois fatos ainda esclarecem quem mais vence na guerra: a violência que alimenta
a indústria armamentista[3].
E quem sai profundamente derrotada é a cultura da paz.
Em ambos
os casos – violência escolar e guerra Israel x Gaza – impera a injustiça, e,
não havendo justiça a ninguém, ou por ausência do Estado ou por excesso de
exceção, o Estado injusto confere aos cidadãos um espaço, uma lacuna, para
fazerem justiça com as próprias mãos.
No fim, a violência – desenfreada ou condicionada – é a única constante.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de
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