Terça-feira, 14 de março de 2023 - 08h26
Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Associate Professor at Federal University of São Carlos (UFSCar)
Líder do Grupo de Pesquisa Sociedade e Educação (UFSCar/CNPq)
https://www.youtube.com/@ACienciadaCF88
RESUMO: na República vigora um princípio corrente no senso comum do povo,
trata-se da observação de que, popularmente falando, “pau que bate em Chico, bate
em Francisco”. Não há meio princípio republicano. Ninguém tem o direito
(enquanto base moral da legitimidade) de indicar amigo ao Supremo Tribunal
Federal ou para ocupar qualquer outro cargo da República. Do contrário,
vigoraria a lógica “amigo-inimigo” e, nessa batalha campal, poderia pensar na
validade de indicarmos nossas avós para atuarem na função de serem nossas
juízas?
Na República, não se indica amigo ou inimigo para nada,
porque devem prevalecer os princípios gerais do direito – a começar por competência,
isonomia, isenção, moralidade pública e capacidade social. Esses cuidados com a
Coisa Pública são basilares, deveriam ser de conhecimento da população em
geral, deveriam ser conteúdo essencial (na sustentação dos direitos
fundamentais) desde o Ensino Fundamental. Porém, não são – aliás, nem mesmo são
alvo dos cursos de Direito ou de Ciências Sociais. O resultado, como se sabe, é
o nepotismo, o proselitismo, o caudilhismo, patrimonialismo. Agora, se os
jovens e crianças não conhecem adequadamente os fundamentos da República, era
de se esperar algo diverso quando se trata da indicação/nomeação de ministros
ao Supremo Tribunal Federal? Por óbvio que sim. Quem faz o juramento de
defender a Constituição, a República e a Democracia? Não cabe nenhuma forma de
tergiversação, menos ainda quando se intui que a mesma regra geral serve como
luva para calçar o Poder Público.
Do Poder Público e do Poder Extroverso
Por Poder
Extroverso, entenda-se tratar da capacidade estatal de impor sua vontade
legítima aos cidadãos, verticalmente, sem que haja consulta popular (mesmo que possa haver recurso cabível), a exemplo
da promulgação legislativa de interesse público. Sua estrutura funcional básica
está lastreada em três condicionantes:
1) Estrutura proposicional enunciada – conteúdos jurídicos correlacionados;
2) Dever-ser: a norma jurídica
ou o sistema de disposições que busca organizar
o âmbito de ação e distribuir competências
entre os entes da Federação (União,
Estados, municípios e o Distrito Federal “dever ser” respeitado);
3) Heteronomia: o direito vale de modo heterônomo (Poder Extroverso) em
relação aos seus obrigados, com ou sem sua vontade, para regras de conduta
individual ou de grupos, e sem comportar
alternativas no caso de regras de
organização do próprio Estado. As normas de organização do Estado, em suma,
possuem o objetivo de assegurar uma convivência juridicamente coordenada, limitar os poderes do Estado,
além de também possuírem um caráter
instrumental, destinado à estrutura
e funcionamento dos órgãos e dos processos técnicos e de aplicação das normas
referentes ao Estado.
Decorrem do Poder Extroverso, determinados atributos
próprios ao poder e à coerção – que seja: soberano; superior; hierárquico;
unilateral; imperioso; coercitivo; auto-regulador. E disto decorrem atribuições
próprias aos atos administrativos:
1.
Presunção relativa de
legitimidade: todo ato administrativo é presumido legítimo até prova em
contrário.
2.
Auto-executoriedade: a Administração Pública
não precisa se socorrer do poder judiciário para executar seus atos.
Ela mesma o faz.
3.
Exigibilidade: é a qualidade que a
Administração Pública possui de exigir o
cumprimento de seus atos. Em contrapartida, só se cumpre o ato
administrativo se ele estiver de acordo com a lei.
4.
Imperatividade: é a qualidade que o ato
administrativo possui de estar revestido da vontade imperativa do Estado.
Trata-se, então, de monismo na fonte,
na origem, e de pluralismo no resultado, nas consequências.
É o que ainda sinaliza
Sundfeld:
O Estado produz seus atos no uso de poder extroverso.
No entanto, o poder político seria arbitrário e despótico se os interessados
não pudessem expor suas razões, opiniões, interesses, antes de serem afetados
pelos atos estatais. Os comerciantes fazem seu lobby no Parlamento; autor e réu
apresentam suas pretensões e provas ao juiz; a empresa se defende da suspeita
de sonegação. São os processos legislativo e judicial e o procedimento
administrativo que permitem essa desejável “participação” dos interessados nas
decisões de autoridades públicas. O processo é, então – em perfeita coerência
com a idéia central do direito público, de realizar o equilíbrio entre
liberdade e autoridade -, a contrapartida assegurada aos particulares pelo fato
de serem atingidos por atos estatais unilaterais (2004, p. 94).
Portanto, o que evita que
o poder público se transforme em poder tirano (usando abusivamente do chamado poder extroverso) é justamente essa
condição elementar da Justiça: a garantia do princípio do contraditório –
principalmente se do outro lado estiver todo o poder e aparato do Estado.
Portanto, o Direito não
se verifica por meio de uma “escolha possível” (faculdade de agir – facultas agendi), “ação com perspectiva
jurídica” (facultas legem) ou livre
arbítrio, mas sim pela imposição de uma certa “verdade” assegurada pela
imposição coercitiva do poder hegemônico (Poder Extroverso), a quem a própria
Lei Universal lhe assegura e atribui, também coercitivamente, a noção de
Legitimidade (note-se que sempre imposta coercitivamente).
Se isto de fato ocorre, é
porque aí se verifica a síntese do princípio democrático: “o procedimento
democrático deve fundamentar a legitimidade do direito” (HABERMAS, 1997, p.
191).
Isto, é claro,
verifica-se melhor sob a ótica do poder comunicativo: “A natureza dos
questionamentos políticos faz com que a regulamentação de modos de
comportamento se abra, no médium do direito,
a finalidades coletivas” (HABERMAS, 1997, pp. 191-192). Portanto, uma das
maiores dificuldades enfrentadas diante da realidade pragmática do direito
(inclusive do “direito ao reconhecimento”) é, justamente, entender/encarar o
direito como parte do poder social e não só como recurso instrumental do poder
extroverso/funcional[1] do Estado.
Quanto mais for concreto
o caráter socialmente impositivo[2] do direito, tanto maior a legitimidade
e a aceitabilidade das normas fundamentais de sociabilidade e tanto mais
auto-reguláveis os projetos teleológicos de poder: os fins seriam mais
comedidos pelos meios[3]: “No
entanto, o caráter do direito, mais concreto do que as regras morais, tem a ver
com o conteúdo de normas jurídicas (a), com o seu sentido de validade (b) e com
o modo de legislação (c)” (HABERMAS, 1997, p. 192-193).
Justamente porque as
vontades ou os valores estariam “controlados” pelo direito positivado — este
que é aberto à interpretação, mas já partindo-se de um sentido firmado e não
“figurado”. Enfim, como se vê, todo o “problema do direito” (mas também seria
da arte, da política, da educação) é, primeiro, quanto à legitimidade e,
depois, quanto à validação. De todo modo, se o direito obedece à política
(enquanto poder social ou instrumental do Estado), não é menos verdade que o
direito precisa ser mais concreto do que a moral para, assim, não se diluir na
própria arena política originária. Isto, evidentemente, evitaria um ciclo
vicioso, opondo-se perigosamente o teleológico ao social. Aliás, este
“mecanismo institucional de monopólio da produção legislativa” somente pode
funcionar se o direito for aceito e reconhecido pela maioria como legítimo,
isto é, se o direito se tornar verdadeiramente social[4].
Referências Bibliográficas
(republicanas)
HABERMAS, J. Técnica e Ciência como “Ideologia”.
Lisboa: Edições 70 Lda ; 1997.
MARTINEZ,
Vinício Carrilho. Estado de Exceção e
Modernidade Tardia: da Dominação Racional à Legitimidade (anti)Democrática.
Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
UNESP/Marília, 2010.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed,
5ª tiragem. Malheiros Editores : São Paulo, 2004.
[1] Como nos diz Sundfeld: “O Estado produz seus atos no
uso de poder extroverso. No entanto,
o poder político seria arbitrário e despótico se os interessados não pudessem
expor suas razões, opiniões, interesses, antes de serem afetados pelos atos
estatais. Os comerciantes fazem seu lobby no Parlamento; autor e réu apresentam
suas pretensões e provas ao juiz; a empresa se defende da suspeita de
sonegação. São os processos legislativo e judicial e o procedimento administrativo
que permitem essa desejável “participação” dos interessados nas decisões de
autoridades públicas. O processo é, então – em perfeita coerência com a ideia
central do direito público, de realizar o equilíbrio entre liberdade e
autoridade -, a contrapartida assegurada aos particulares pelo fato de serem
atingidos por atos estatais unilaterais” (2004, p. 94).
[2] Como consenso obtido pelo reconhecimento
e validado pela livre comunicação dos sujeitos envolvidos e requerentes, e não
como heteronomia política, jurídica ou moral. Mas aí o problema seria quanto
aos costumes, tanto comus quanto ethos, porque são entes culturais
relativamente fechados em torno de regras sociais anteriormente definidas e não
predispostas a modificações substanciais subrepticiamente.
[3] Entendidos como meios, valores e ações
democráticas, tolerantes e transigentes como o pluralismo e as diferenças naturais
ao discurso político e às relações sociais de modo geral.
[4] Foi um objeto bem parcialmente anotado na
tese de doutorado (MARTINEZ, 2010). Inédito.
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