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Vinício Carrilho

Poder Extroverso - Posso indicar minha avó ao STF?


Poder Extroverso - Posso indicar minha avó ao STF? - Gente de Opinião

Vinício Carrilho Martinez (Dr)

Associate Professor at Federal University of São Carlos (UFSCar)

Líder do Grupo de Pesquisa Sociedade e Educação (UFSCar/CNPq)

https://www.youtube.com/@ACienciadaCF88

 

RESUMO: na República vigora um princípio corrente no senso comum do povo, trata-se da observação de que, popularmente falando, “pau que bate em Chico, bate em Francisco”. Não há meio princípio republicano. Ninguém tem o direito (enquanto base moral da legitimidade) de indicar amigo ao Supremo Tribunal Federal ou para ocupar qualquer outro cargo da República. Do contrário, vigoraria a lógica “amigo-inimigo” e, nessa batalha campal, poderia pensar na validade de indicarmos nossas avós para atuarem na função de serem nossas juízas?

 

Na República, não se indica amigo ou inimigo para nada, porque devem prevalecer os princípios gerais do direito – a começar por competência, isonomia, isenção, moralidade pública e capacidade social. Esses cuidados com a Coisa Pública são basilares, deveriam ser de conhecimento da população em geral, deveriam ser conteúdo essencial (na sustentação dos direitos fundamentais) desde o Ensino Fundamental. Porém, não são – aliás, nem mesmo são alvo dos cursos de Direito ou de Ciências Sociais. O resultado, como se sabe, é o nepotismo, o proselitismo, o caudilhismo, patrimonialismo. Agora, se os jovens e crianças não conhecem adequadamente os fundamentos da República, era de se esperar algo diverso quando se trata da indicação/nomeação de ministros ao Supremo Tribunal Federal? Por óbvio que sim. Quem faz o juramento de defender a Constituição, a República e a Democracia? Não cabe nenhuma forma de tergiversação, menos ainda quando se intui que a mesma regra geral serve como luva para calçar o Poder Público.

 

Do Poder Público e do Poder Extroverso

Por Poder Extroverso, entenda-se tratar da capacidade estatal de impor sua vontade legítima aos cidadãos, verticalmente, sem que haja consulta popular (mesmo que possa haver recurso cabível), a exemplo da promulgação legislativa de interesse público. Sua estrutura funcional básica está lastreada em três condicionantes:

1) Estrutura proposicional enunciadaconteúdos jurídicos correlacionados;

2) Dever-ser: a norma jurídica ou o sistema de disposições que busca organizar o âmbito de ação e distribuir competências entre os entes da Federação (União, Estados, municípios e o Distrito Federal “dever ser” respeitado);

3) Heteronomia: o direito vale de modo heterônomo (Poder Extroverso) em relação aos seus obrigados, com ou sem sua vontade, para regras de conduta individual ou de grupos, e sem comportar alternativas no caso de regras de organização do próprio Estado. As normas de organização do Estado, em suma, possuem o objetivo de assegurar uma convivência juridicamente coordenada, limitar os poderes do Estado, além de também possuírem um caráter instrumental, destinado à estrutura e funcionamento dos órgãos e dos processos técnicos e de aplicação das normas referentes ao Estado.

Decorrem do Poder Extroverso, determinados atributos próprios ao poder e à coerção – que seja: soberano; superior; hierárquico; unilateral; imperioso; coercitivo; auto-regulador. E disto decorrem atribuições próprias aos atos administrativos:

1.     Presunção relativa de legitimidade: todo ato administrativo é presumido legítimo até prova em contrário.

2.     Auto-executoriedade: a Administração Pública não precisa se socorrer do poder judiciário para executar seus atos. Ela mesma o faz.

3.     Exigibilidade: é a qualidade que a Administração Pública possui de exigir o cumprimento de seus atos. Em contrapartida, só se cumpre o ato administrativo se ele estiver de acordo com a lei.

4.     Imperatividade: é a qualidade que o ato administrativo possui de estar revestido da vontade imperativa do Estado.

 

Trata-se, então, de monismo na fonte, na origem, e de pluralismo no resultado, nas consequências.

É o que ainda sinaliza Sundfeld:

O Estado produz seus atos no uso de poder extroverso. No entanto, o poder político seria arbitrário e despótico se os interessados não pudessem expor suas razões, opiniões, interesses, antes de serem afetados pelos atos estatais. Os comerciantes fazem seu lobby no Parlamento; autor e réu apresentam suas pretensões e provas ao juiz; a empresa se defende da suspeita de sonegação. São os processos legislativo e judicial e o procedimento administrativo que permitem essa desejável “participação” dos interessados nas decisões de autoridades públicas. O processo é, então – em perfeita coerência com a idéia central do direito público, de realizar o equilíbrio entre liberdade e autoridade -, a contrapartida assegurada aos particulares pelo fato de serem atingidos por atos estatais unilaterais (2004, p. 94).

 

Portanto, o que evita que o poder público se transforme em poder tirano (usando abusivamente do chamado poder extroverso) é justamente essa condição elementar da Justiça: a garantia do princípio do contraditório – principalmente se do outro lado estiver todo o poder e aparato do Estado.

Portanto, o Direito não se verifica por meio de uma “escolha possível” (faculdade de agir – facultas agendi), “ação com perspectiva jurídica” (facultas legem) ou livre arbítrio, mas sim pela imposição de uma certa “verdade” assegurada pela imposição coercitiva do poder hegemônico (Poder Extroverso), a quem a própria Lei Universal lhe assegura e atribui, também coercitivamente, a noção de Legitimidade (note-se que sempre imposta coercitivamente).

Se isto de fato ocorre, é porque aí se verifica a síntese do princípio democrático: “o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito” (HABERMAS, 1997, p. 191).

Isto, é claro, verifica-se melhor sob a ótica do poder comunicativo: “A natureza dos questionamentos políticos faz com que a regulamentação de modos de comportamento se abra, no médium do direito, a finalidades coletivas” (HABERMAS, 1997, pp. 191-192). Portanto, uma das maiores dificuldades enfrentadas diante da realidade pragmática do direito (inclusive do “direito ao reconhecimento”) é, justamente, entender/encarar o direito como parte do poder social e não só como recurso instrumental do poder extroverso/funcional[1] do Estado.

Quanto mais for concreto o caráter socialmente impositivo[2] do direito, tanto maior a legitimidade e a aceitabilidade das normas fundamentais de sociabilidade e tanto mais auto-reguláveis os projetos teleológicos de poder: os fins seriam mais comedidos pelos meios[3]: “No entanto, o caráter do direito, mais concreto do que as regras morais, tem a ver com o conteúdo de normas jurídicas (a), com o seu sentido de validade (b) e com o modo de legislação (c)” (HABERMAS, 1997, p. 192-193).

Justamente porque as vontades ou os valores estariam “controlados” pelo direito positivado — este que é aberto à interpretação, mas já partindo-se de um sentido firmado e não “figurado”. Enfim, como se vê, todo o “problema do direito” (mas também seria da arte, da política, da educação) é, primeiro, quanto à legitimidade e, depois, quanto à validação. De todo modo, se o direito obedece à política (enquanto poder social ou instrumental do Estado), não é menos verdade que o direito precisa ser mais concreto do que a moral para, assim, não se diluir na própria arena política originária. Isto, evidentemente, evitaria um ciclo vicioso, opondo-se perigosamente o teleológico ao social. Aliás, este “mecanismo institucional de monopólio da produção legislativa” somente pode funcionar se o direito for aceito e reconhecido pela maioria como legítimo, isto é, se o direito se tornar verdadeiramente social[4].

 

Referências Bibliográficas (republicanas)

HABERMAS, J. Técnica e Ciência como “Ideologia”. Lisboa: Edições 70 Lda ; 1997.

 

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da Dominação Racional à Legitimidade (anti)Democrática. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP/Marília, 2010.

 

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed, 5ª tiragem. Malheiros Editores : São Paulo, 2004.



[1] Como nos diz Sundfeld: “O Estado produz seus atos no uso de poder extroverso. No entanto, o poder político seria arbitrário e despótico se os interessados não pudessem expor suas razões, opiniões, interesses, antes de serem afetados pelos atos estatais. Os comerciantes fazem seu lobby no Parlamento; autor e réu apresentam suas pretensões e provas ao juiz; a empresa se defende da suspeita de sonegação. São os processos legislativo e judicial e o procedimento administrativo que permitem essa desejável “participação” dos interessados nas decisões de autoridades públicas. O processo é, então – em perfeita coerência com a ideia central do direito público, de realizar o equilíbrio entre liberdade e autoridade -, a contrapartida assegurada aos particulares pelo fato de serem atingidos por atos estatais unilaterais” (2004, p. 94).

[2] Como consenso obtido pelo reconhecimento e validado pela livre comunicação dos sujeitos envolvidos e requerentes, e não como heteronomia política, jurídica ou moral. Mas aí o problema seria quanto aos costumes, tanto comus quanto ethos, porque são entes culturais relativamente fechados em torno de regras sociais anteriormente definidas e não predispostas a modificações substanciais subrepticiamente.

[3] Entendidos como meios, valores e ações democráticas, tolerantes e transigentes como o pluralismo e as diferenças naturais ao discurso político e às relações sociais de modo geral.

[4] Foi um objeto bem parcialmente anotado na tese de doutorado (MARTINEZ, 2010). Inédito. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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