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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Rasgos, remendos e costuras indígenas


Rasgos, remendos e costuras indígenas - Gente de Opinião

Esse texto foi elaborado para ampla divulgação, o que também chamamos de divulgação científica ou popularização da ciência. É uma narrativa, com fundamentos lógicos e verificáveis, contudo, tem a chancela, a experiência creditícia de quem vive as aspirações do seu povo no dia a dia: a cacica Uruba. Então, não deixa de ser uma bela composição, a seis mãos, entre intuição do conhecimento e expressão na primeira pessoa. É um texto predominantemente feminino – feminino-indígena – e ata teoria e prática. Merece ser lido, se não fosse por outras razões, isso já bastaria, porque difunde Ciência e mundo da vida.

Nossa história se inicia no auge dos debates sobre a inclusão dos direitos indígenas em 1988, quando Ailton Krenak e apoiadores subiram rumo ao Congresso Nacional em defesa aos povos originários. Desde então, a Constituição Federal de 1988 representa uma quebra na visão colonialista, abrindo espaço para uma postura de respeito à identidade cultural e aos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas – assim, ficando implícito o direito já́ existente às terras por eles habitadas.

O artigo. 231, da CF88 (BRASIL, 1988), diz: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E mais, o § 4o diz, "as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis". Paradoxalmente, as terras indígenas vêm sendo cada vez mais invadidas e atacadas por fazendeiros, madeireiros, grileiros, garimpeiros provocando grandes desmatamentos, genocídios e perda grande dos conhecimentos e população indígena brasileira.

Em 2018, o antropólogo Stephen Baines dizia à Agência Brasil, citando convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos povos indígenas (PEDUZZI, 2018):

 

(...) é difícil para os índios planejar grandes voos do ponto de vista de recursos, sem que, antes, seja resolvida a questão da gestão territorial, o que inclui a segurança jurídica que só é possível a eles após terem suas terras demarcadas e homologadas. É fundamental que se tenha respeito pelos índios e pela sua forma de viver e produzir. Para tanto, é necessária a efetivação dos direitos previstos tanto na Constituição como pelas convenções internacionais.

 

De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), somente 13,8% de todas as terras do Brasil são reservadas aos povos originários. No país, há 732 terras indígenas (em diferentes etapas do processo de demarcação). Dessas, somente 487 foram homologadas (quando o processo de demarcação foi concluído) desde 1988. É importante ressaltar que o governo, entre os anos de 2019 e 2022, foi o primeiro e único a não demarcar nenhuma terra indígena (ACERVO ISA, 2023).

No relatório de violência contra os povos indígenas no Brasil, com dados do ano de 2019, lê-se (CIMI, 2019, p. 6):

 

O aumento vertiginoso de invasões, grilagens, incêndios criminosos, loteamentos ilegais, ameaças, conflitos, descasos no atendimento à saúde e à educação, criminalização, dentre outras violações a seus direitos, evidencia que os indígenas enfrentam um dos momentos históricos mais desafiadores desde a invasão dos colonizadores.

 

Ainda dentro do relatório encontramos o seguinte dado: “Segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), o desmatamento nas terras indígenas da região amazônica, entre agosto de 2018 e julho de 2019, foi o maior registrado em 11 anos, com 42,6 mil hectares derrubados” (ACERVO ISA, 2023).

De acordo com o dossiê lançado no dia 16 de Marco de 2023, um dossiê inédito da Aliança em Defesa dos territórios, a expansão dos garimpos ilegais em terras indígenas está fortemente ligada à fragilidade das leis, à falta de fiscalização, à omissão das autoridades e à vulnerabilidade das regiões exploradas. O dossiê intitulado “Terra Rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira” (ACERVO ISA, 2023), apresenta dados de terras Yanomami, Munduruku e Kayapó, que comprovam que o garimpo nas Terras Indígenas (TIs) na região cresceu em 495% entre 2010 e 2020, com a exploração de ouro principalmente. As afirmações contidas no documento, que traz consigo comprovações dos fatos descritos, sinaliza as graves violações aos Direitos dos Povos Indígenas, como o direito à vida, ao território, à autodeterminação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à segurança e direito à saúde e alimentação. 

Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (MACIEIRA, 2022), que leva em consideração os anos de 2019 e 2020, analisou com profundidade as permissões de extração de substâncias minerais, lavra garimpeira no País. Dentre os resultados, tem-se que 90% das áreas de exploração mineral estavam fora de locais autorizados. Esta realidade é observada em diversos territórios indígenas, a extração de minerais, as invasões de terra indígenas com implementação da monocultura, grileiros, fazendeiros, genocídios, desmatamento, incêndios, e várias outras formas de violência contra o povo indígena, mas também contra toda humanidade.

Vale aqui ressaltar a importância do território, a relação que indígenas possuem com a terra. Diferente do que a maioria da população considera, a luta pelo território não é uma luta pela posse do território como bem material, e sim pela luta do território em forma de defesa e proteção de toda humanidade. A não compreensão da cosmovisão e cosmopolítica da população indígena tem prejudicado a 523 anos o respeito e apoio às causas indígenas.

A relação que indígenas possuem com território, natureza, terra, necessita de escuta e espaço de fala. Como cita Kena Azevedo Chaves: “Povos indígenas encontram em seus territórios a base material para organização da vida” (TZUL, 2015 apud CHAVES, 2021, p. 52). É também através do território que sua existência enquanto povo, a partir de uma perspectiva identitária ligada as cosmologias especificas, se faz possível. (ALMEIDA, 2012 apud CHAVES, 2021). Ainda sobre a cosmologia indígena, temos as fortes palavras de Fabiane Medina da Cruz em entrevista para PEITA em 2021 (CRUZ, 2020, p. 48):

 

(...) conforme a economia política ancestral, o mundo tem uma natureza autônoma, a qual não podemos possuir. A natureza e os elementos da cosmologia, além de possuírem espíritos próprios, são coisas que não podem ser ‘dominadas’ pelos seres humanos, uma vez que o cosmos tem muito mais poder sobre a vida dos seres vivos do que o contrário. Portanto, a relação da pessoa indígena com o mundo, a vida e a natureza é uma relação muito mais de respeito do que dominação.

 

Povos indígenas celebram a terra, pedem permissão à terra e lutam pelos territórios e libertação dos invasores e devastadores dos ecossistemas, lutam pela harmonia com a Mãe Terra, lutando por todos nós, 8 bilhões de seres humanos espalhados ao Mundo.

O Brasil, infelizmente retornou ao “Mapa da fome”, conforme relatório da FAO (Food and Agriculture Organization) publicado no ano de 2022 (FAO, 2022). Esse cenário de insegurança alimentar e fome intensificou-se nos últimos anos e a cosmovisão indígena de 300 povos do País pode contribuir no processo de segurança alimentar, como propõe o CIMI  (2023) na notícia vinculada do dia 28/03/2023 com o tema: “Territórios Livres”, e o lema “Povos sem fome”.

Dia 11 de Janeiro de 2023, tivemos a honra de acompanharmos a posse de Sonia Guajajara ao primeiro e histórico Ministério dos Povos Indígenas criado no governo Lula, em seu terceiro mandato, 2023, em resposta às reinvindicações históricas do movimento indígena (cacica Uruba). Durante a sua posse, Sonia ressaltou:

 

Precisamos voltar a pensar as políticas de educação para os indígenas, valorizando as identidades plurais, formando professores indígenas, ampliando o acesso e a permanência no ensino superior. As terras indígenas, os territórios habitados por demais povos e comunidades tradicionais, e as unidades de conservação são essenciais para conter o desmatamento no Brasil e para combater a emergência climática enfrentada por toda a humanidade. Sabemos que não será fácil superar 522 anos em quatro, mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós (G1, 2023, p. 1).

 

Junto com a criação do Ministério e a tomada de posse, veio a realidade enfrentada de povos indígenas entre os anos de 2019 e 2022. Encontravam-se invisibilizados, como se foi possível perceber com a crise humanitária enfrentada pelo povo Yanomami, com mais de 11.000 casos de malária, mortes causadas por mercúrio e desnutrição, violência sexual, assassinatos e desaparecimentos, como relata Ricardo Weibe Tapeba, secretário de saúde indígenas (SESAI).

Diversos territórios indígenas aguardam a emissão da portaria declaratória pelo Ministério da Justiça, como é o caso do TI Barra Velha, situado no extremo sul da Bahia. Desde 2009 o TI teve publicado o relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área pela Funai, e, mesmo sem nenhum impedimento para a emissão, ainda não teve a portaria emitida.

Vale aqui ressaltar a instrução normativa 09/2020 publicada pela Funai sob o último governo, que evidenciou a pressão a esses territórios, liberando a certificação de fazendas sobre terras indígenas ainda não homologadas, causando conflitos, violências e mortes. Durante este período, o efeito foi imediato após a normativa, um total de 51 fazendas certificadas sobre o território indígena Barra Velha e Comexatibá, sobrepostas integralmente às terras indígenas. Entre abril e agosto de 2020, foram 10 certificações de propriedades sobre o TI Comexatibá e 41 sobre o TI Barra Velha, sendo que, a maioria pertencentes à fazendeiros derrotados no STJ. De acordo com o CIMI e acompanhamento de fatos diários ocorridos no TI Barra Velha, fazendeiros têm negociado e financiado atividades nestas áreas, aumentando a pressão e devastação do território já reconhecido oficialmente como tradicional ocupado pelo povo Pataxó (CIMI, 2023).

No dia dos Povos Indígenas, 19 de abril de 2023, a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), anunciou a criação de 6 grupos técnicos para identificação e delimitação de Terras indígenas nos estados do Acre, Amazonas, Rondônia e Rio Grande do Sul. Atos estes que já foram assinados pela presidenta da FUNAI, Joenia Wapichana, juntamente com a ministra dos povos indígenas Sonia Guajajara.

Do dia 24 ao dia 28 de abril de 2023, aconteceu a maior mobilização indígena em Brasília (DF), o ATL (Acampamento Terra Livre), que está em sua 19 edição e contou, como uma das pautas centrais, a emergência climática, reforçando a importância da demarcação de terras indígenas, pois funcionam contra o desmatamento, já identificado no combate ao aquecimento global. Foi decretado, durante o evento, na quarta feira dia 26, a emergência climática e o debate sobre a contribuição e comprometimento dos povos originários na solução. Foi também anunciada a reativação dos trabalhos do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), para que sirva como posicionamento do movimento indígena na discussão sobre o tema em nível nacional e no exterior, aumentando assim a interlocução com os governos. Foram discutidas também ações em relação ao Judiciário com a principal demanda de rejeição a tese do marcos temporal, que já se arrasta há anos em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) e deve ser retomado pela Corte dia 7 de Junho de 2023.

Será difícil consertar tudo que foi abandonado durante este período de 2019 à 2022, mas muitos espaços de falas estão sendo abertos, muitas denúncias estão sendo ouvidas e aguardamos que 2023 seja o início de grandes resoluções, que a ATL seja sementes de muitas soluções e atenções às comunidades indígenas que resistem, persistem e insistem na busca de um Mundo melhor a todos e às suas vidas!


 

REFERÊNCIAS

 

ACERVO ISA. Terra rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira. Brasília: Aliança em Defesa dos Territórios, 2023, 98 p. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/terra-rasgada-como-avanca-o-garimpo-na-amazonia-brasileira. Acesso em: 20 mar. 2023.

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Emendas Constitucionais. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 06 out. 2020.

 

CHAVES, Kena Azevedo. Corpo-território, reprodução social e cosmopolítica: reflexões a partir das lutas das mulheres indígenas no Brasil. Scripta Nova Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Bracelona, v. 25, n. 4, 2021. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/357571919_Corpo-territorio_reproducao_social_e_cosmopolitica_reflexoes_a_partir_das_lutas_das_mulheres_indigenas_no_Brasil. Acesso em: 3 abr. 2023.

 

CIMI -  CONSELHO ÍNDIGENA MISSIONÁRIO. Alvo de violência, povo Pataxó cobra demarcação e presença do governo federal no extremo sul da Bahia. CIMI, 2023. Disponível em: https://cimi.org.br/2023/02/violencia-pataxo-demarcacao-governo-federal/. Acesso em: 3 abr. 2023.

 

CIMI -  CONSELHO ÍNDIGENA MISSIONÁRIO. Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados 2019. CIMI, 2020. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2020/10/relatorio-violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2019-cimi.pdf. Acesso em: 03 Abr. 2023.

 

CIMI. Semana dos povos indígenas. Disponível em: https://cimi.org.br/2023/03/semana-povos-indigenas-2023-cimi/. Acesso em: 03 Abr. 2023.

 

CRUZ, Fabiane Medine. Feminismo Indígena ou Nhandutí Guasu Kunhã: a rede de mulheres indígenas pelos direitos ancestrais e reconhecimento ético. In: DORRICO, Julie; DANNER, Fernando; DANNER, Leno Francisco (orgs.). Literatura indígena brasileira contemporânea: autoria, autonomia e ativismo. Porto ALegre: Editora Fi, 2020.  Disponível em: https://peita.me/blogs/news/feminismo-indigena-e-rede-mulheres-indigenas. Acesso em: 3 abr. 2023.

 

FAO. The State of Food and Agriculture 2022. Leveraging automation in agriculture for transforming agrifood systems. Rome: FAO, 2022. https://doi.org/10.4060/cb9479en. Disponível em: https://www.fao.org/3/cb9479en/cb9479en.pdf. Acesso em: 3 abr. 2023.

 

G1. No comando do Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara é a primeira indígena a chefiar uma pasta. Jornal Nacional, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/01/11/no-comando-do-ministerio-dos-povos-indigenas-sonia-guajajara-e-a-primeira-indigena-a-chefiar-uma-pasta.ghtml. Acesso em: 3 abr. 2023.

 

INSTITUTO UPDATE. Yanomami, defesa de territórios e a importância do Ministério dos Povos Indígenas. Instituto Update, 2023. Disponível em: https://www.institutoupdate.org.br/yanomami-defesa-de-territorios-e-a-importancia-do-ministerio-dos-povos-indigenas/. Acesso em: 3 abr. 2023.

 

MACIEIRA, Luana. “Ouro que dá em árvore”: artigo descreve como o garimpo ilegal avança sobre terras indígenas. UFMG Notícias, 2022. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ouro-que-da-em-arvore. Acesso em: 20 mar. 2023.

 

PEDUZZI, Pedro. Um milhão de indígenas brasileiros buscam alternativas para sobreviver. Agência Brasil, 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-04/um-milhao-de-indigenas-brasileiros-buscam-alternativas-para-sobreviver. Acesso em: 3 abr. 2023.

 

TERRAS INDÍGENAS. Início: Terras Indígenas no Brasil. 2023. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

 

ALMEIDA, Maria da Conceição de. Complexidade, saberes científicos, saberes da tradição. Coleção contextos da ciência. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010.

 

BAGELE, Chilisa. Indigenous research methodologies. Thousand Oaks, California: Sage Publications, 2012.

 

LINDA, Tuhiwai Smith. Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. London: Zed Books, 2012.

 

TROUILLOT, Michel-Rolph, Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston, Mass.: Beacon Press, 1995.

 

TZUL, Gladys. Mujeres indígenas: historias de la reproducción de la vida en Guatemala. Una reflexión a partir de la visita de Silvia Federici. Bajo el Volcán, v. 15, n. 22, p. 91–99, 2015.

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