Quarta-feira, 22 de maio de 2024 - 08h05
Dentre
tantas questões sérias e muitas irreversíveis, como a perda de mais de uma
centena de vidas, o que a catástrofe ambiental do Rio Grande do Sul está nos
ensinando até este momento?
É
seguro afirmar que nem em situações catastróficas, gigantescas no grau de
destruição e morte, a ciência é trazida para o debate. Por quê? Porque, com a
ciência, a análise dos dados demonstraria a série infinita de desmandos, abusos
e crimes ambientais que desembocaram na destruição do Estado do Rio Grande do
Sul – pois, antes de tudo, foi a ação humana, a serviço do capital de barbárie
(leia-se agronegócio e exploração de petróleo como fonte energética) o motor
dessa enorme crise humanitária e ambiental (e de tantas outras)[1].
O
negacionismo visto na pandemia COVID-19 – com desdém sobre os mortos ou sobre a
vacinação que nos transformaria em jacarés, com o implante de chips reptilianos
– e nas ações estatais destinadas a contrariar a vacinação pública, é um caso
semelhante (e próximo no tempo) de negação da ciência. Essa negação apareceu
nas urnas. As cidades com maiores índices de óbitos por COVID-19 foram as que
registraram maior votação no ex-presidente Jair Bolsonaro. Estudo realizado na
UNICAMP mostrava a relação entre a escolha eleitoral do pleito de 2018 e os
óbitos durante a pandemia. Essa relação se manteve na eleição de 2022, apesar
dos efeitos funestos da política negacionista[2].
Além
da ciência médica negada (por muitos, até hoje), a ciência social nos diria que
esse tipo de negacionismo (ou zombaria com a morte alheia) é um traço marcante
do Fascismo atual. O futuro já é presente, e as catástrofes sociais e
ambientais estão à frente da própria ficção, pois são reais, são seres humanos
como nós e você que lê esse texto. Nós já vivemos o que os artistas criaram e ainda
vão criar[3].
Portanto,
a pergunta a seguir é a nossa primeira e próxima pista: quando foi que perdemos
a total capacidade de nos conectarmos como humanos, com um mínimo de
sociabilidade e de empatia?
O
desastre ambiental no Rio Grande do Sul nos revelou o que há de pior na
humanidade, na cultura brasileira. Não é normal responder a essa grave crise
humanitária com saques, pilhagens – não é normal sentir tanta indiferença à
morte de centenas de pessoas ou à perda de entes queridos e dos seus bens
únicos. Pior ainda se pensarmos que os mais afetados são as populações mais
pobres, muitas das que já haviam perdido tudo em 2023 – e agora, o que a água
não levou, levaram os ladrões, saqueadores[4].
Junto a isto, o líder de um setor
especializado do crime organizado de São Paulo se dirigia ao Rio Grande do Sul
quando foi capturado. Sua especialidade? Agiotagem com 300% de juros ao mês. A
quem estaria levando seus préstimos? Àqueles que já perderam tudo, só restando
um fio de esperança para se manterem vivos. E o Poder Público, investiu quanto
desde a última grande cheia, no ano passado, em prevenção de crises climáticas?
Zero ou muito próximo disso. Ainda somemos ao flagelo humano um gesto
empresarial que encaminha os “trocos” que os clientes de suas lojas enviam de
socorro. Ou seja, faz marketing de donativos financeiros com o dinheiro alheio.
O cinismo sempre foi uma questão de análise
filosófica, se bem que os atuais níveis deixariam qualquer pensador bastante
constrangido. Independente a isso, o cinismo tem que ser analisado de forma
mais orgânica, como parte da cultura nacional, como ingrediente de uma
elaborada imoralidade. O resultado não é só a descrença nas instituições, como
vemos na estampa de candidatos antissistema. O problema agora é muito mais
amplo, e as soluções parecem curtas (escapistas) ou só se mostram à vista no
longo prazo.
Parece que, de tanto insistirmos – diríamos
que por séculos – na indiferença humana, tratando pessoas como coisas, objetos
descartáveis, hoje, finalmente, vemos o clarão dessas origens nefastas. Não é
normal ver a morte de pessoas agonizadas pela tragédia e tirar proveito disso.
O que chamamos de cinismo, numa leitura
psicológica, bem poderia ser traduzida por psicopatia, uma vez que o transtorno
mental é caracterizado por comportamentos antissociais e amorais, pela
incapacidade de estabelecer laços afetivos profundos e de sentir remorso ou
arrependimento e extremo egocentrismo. Não é difícil de visualizarmos esse tipo
de comportamento se lembrarmos que autoridades já zombaram publicamente de
pessoas morrendo com falta de ar, no auge da pandemia. Isso não pode ser
considerado normal.
Dentro
da psicologia não há um consenso que diferencie psicopatia e sociopatia. Mas,
em linhas gerais, e especificamente sobre a causa da condição, a psicopatia é
uma condição inata ao indivíduo, que tem uma estrutura cerebral com menos
conexões entre algumas estruturas que regulam as emoções e comportamentos
sociais. A sociopatia, por sua vez, é uma condição de
origem social, que resulta do ambiente e das trocas sociais às quais o
indivíduo está imerso. Tanto sociopatas como psicopatas violam de formas
diferentes as regras sociais. Estima-se que cerca de 1% da população mundial possua
psicopatia.
Que uma pessoa nasça com uma condição cerebral para a manipulação
e violação das normas, ou que outras tenham sofrido traumas durante a infância
que as levem a atitudes sem empatia, é uma coisa. Agora, que tantas outras
pessoas façam dessas primeiras líderes, ou que se tornem seguidores cegos de
algumas dessas figuras, é realmente preocupante. A identificação com
gente desse calibre de imoralidade não é ocasional, não é acidental, não é
coincidência. É uma profunda semelhança com a indiferença e a incapacidade de
sentir a dor do Outro/a. Não é normal nutrirmos adesão ou identificação com
indivíduos que são incapazes de manterem um mínimo estágio de interação social.
Portanto,
os sentimentos que o desastre ambiental do RS nos revelou, além da falta de
empatia social das próprias autoridades, inertes e indiferentes, foi a adesão
imoral a níveis muito elevados de sociopatia: um transtorno mais do caráter, da imoralidade, do que é resultado
de alguma disfunção cerebral (ainda que também possa ser). Desse modo vemos que
o desastre ambiental, para não falar dos crimes ambientais envolvidos na
antessala do dilúvio, revela um problema social de muito difícil solução. No
nosso caso, realmente, parece que o cinismo se converteu em sociopatia.
Pode-se
questionar essas afirmações, contrapondo-as com as inúmeras demonstrações de
solidariedade com os atingidos do Rio Grande do Sul. Empresas, figuras
públicas, artistas têm doado quantias e arrecadado valores para contribuir[5],
enquanto pessoas comuns se voluntariam tanto no momento dos resgates das
vítimas como na recuperação das cidades[6].
Essa onda de solidariedade seria uma contradição à imoralidade?
Para
compreender essa questão, precisamos primeiro entender que tratamos aqui de uma
questão social, não exclusivamente individual, apesar de também o ser. Ou seja,
não é sobre João, Maria ou Pedro, mas sobre uma sociedade que, em sua doença,
tem ações que em aparência são de empatia, mas em essência, mantém o status quo
– e a catástrofe ambiental (e social) perduraria. Isto é, os bilionários que
doam não deixam de explorar os trabalhadores, os voluntários que remam, não
deixam de votar em políticos negacionistas e sociopatas. Essa é uma imoralidade
subterrânea, pois temos ainda que lidar com aquela que está explícita.
Em meio à tragédia, de proporções épicas,
mulheres e crianças têm de ser separadas dos homens, nos alojamentos, porque os
casos de violência, abusos e de estupros não são poucos. Não há exagero em
afirmar que foi preciso instaurar uma moratória[7],
um tipo de estado de emergência sobre ou contra a total imoralidade[8].
As análises presentes e futuras da sociedade
brasileira precisam levar em consideração a sociopatia, e não só os níveis
mínimos de interação social – pois, se antes estavam sob uma verificação do
“mínimo”, hoje parece que ganharam dimensões quase absolutas, como uma
verdadeira cheia de imoralidades, explícitas e subterrâneas.
Perguntemos novamente: Quando foi estabelecido que o negacionismo, a falta de controle
ambiental e responsabilização, os constantes desmatamentos e a avidez pelos
últimos recursos naturais são simbologias válidas para a sociabilidade[9]?
Diante do pior impacto na vida real das pessoas, do caos social, da destruição
da terra arrasada pelas águas, é correto afirmar que doações de alimentos,
roupas, remédios, equipamentos, serão responsáveis por um “impacto negativo no
comércio local”? Mas, qual seria esse comércio local se foi tudo arrasado,
bairros, cidades inteiras, como num cenário de guerra[10]?
Em casos graves, como esse combo que
vemos desfilar no Brasil, de fato, a “ignorância agravada pela imbecilidade”
deveria constituir um tipo penal, pois, para citar apenas um caso, associou-se
a tragédia social, ambiental, no Rio Grande do Sul à macumba[11].
Ao
contrário de políticos de carreira profissional e dos negacionistas, a
sabedoria popular conhece bem a natureza dos eventos ocorridos no Rio Grande do
Sul e tem a convicção do conhecimento adquirido pelo Bom Senso, para saber que
não se trata de um problema da natureza, mas sim decorrente da ação humana
destruidora[12].
Assim, por fim, a questão que fica é: o que farão depois disso?
[1] Eventos como a onda de calor e
incêndios na Sibéria em 2020, a seca no hemisfério Norte em 2022, inundações no
Paquistão em 2022, furacões nos EUA, seca na Amazônia, entre tantos outros, são
resultado, também, das alterações climáticas. Cientistas têm alertado sobre os
efeitos das mudanças climáticas há décadas. Inclusive, em 2014 o governo de
Dilma Roussef encomendou uma grande pesquisa sobre o tema para traçar
horizontes para o caso brasileiro, o Brasil 2040: cenários e alternativas de
adaptação à mudança do clima. No documento eram previstos aumento de chuvas,
ondas de calor, secas e colapsos de hidrelétricas e elevação do nível do mar. O
relatório foi engavetado.
[2] "A descrença sobre os efeitos
prejudiciais da pandemia, a não aceitação do uso de máscaras faciais, a
resistência inicial à compra de vacinas e a lenta implementação de uma campanha
de imunização podem ser algumas das razões para essa associação entre os votos
de Bolsonaro e a mortalidade excessiva.". Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/05/20/municipios-que-tiveram-mais-morte-por-covid-mantiveram-voto-em-bolsonaro-em-2022.
Acesso em 21 maio 2024.
[3] Produções hollywoodianas, mesmo com o
apelo comercial, de formas diferentes traziam o tema, como em O dia depois de
amanhã e Wall-E. Destaca-se em 2024 a mais recente produção de Francis Ford
Coppola, Megalopolis. https://www.uol.com.br/splash/colunas/flavia-guerra/2024/05/17/em-cannes-coppola-faz-de-megalopolis-ato-pela-arte-democracia-e-cinema.htm.
Acesso em 17/05/2024.
[4] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/08/policial-civil-saques-sao-generalizados-nao-tem-como-evitar.htm.
Acesso em 08/05/2024.
[5] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/05/10/como-as-marcas-tem-trabalhado-para-ajudar-as-vitimas-da-tragedia-no-rs.htm.
Acesso em 21 maio 2024.
[6] https://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2024/05/17/o-brasil-e-a-solidariedade-a-impressionante-capacidade-de-mobilizacao-de-brasileiros-diante-de-tragedias-como-a-do-rs.ghtml.
Acesso em 21 maio 2024.
[7] https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2024/05/17/falta-ao-rio-grande-do-sul-a-solidariedade-de-um-inquerito.htm.
Acesso em 17/05/2024.
[8] https://www.uol.com.br/universa/colunas/cristina-fibe/2024/05/17/abrigos-so-pra-mulheres-e-criancas-no-rs-a-que-ponto-chegamos.htm.
Acesso em 17/05/2024.
[9] https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2024/05/15/mudancas-gestao-eduardo-leite-enfraqueceram-protecao-meio-ambiente.htm.
Acesso em 15/05/2024.
[10] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/05/15/criticas-eduardo-leite-doacoes-pequenos-comerciantes.htm.
Acesso em 15/05/2024.
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