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Vinício Carrilho

Trump e a pax americana


Trump e a pax americana - Gente de Opinião

Uma interpretação já tornada clássica para definir o “modo americano de resolver a política” (a pax americana aplicada em casa) é dada por meio do que Losurdo (2004) apelidou de bonapartismo soft[1]. De modo inspirado, recupera a análise de Marx (1978) sobre o próprio bonapartismo aplicado na França insurreta, com a diferença de que a “via legal” será o modus operandi empregado na restrição ou negação da Política – a segunda diferença, decorrente, é o não-uso dos tradicionais golpes de Estado[2].

Em outras palavras, é um tipo de democracia restritiva que emprega os meios de exceção como forma de manter seu modelo sob o controle direto de um sistema político que apela à violência em casos não muito esporádicos: contabilizam-se quatro assassinatos de presidentes e quase duas dezenas de tentativas de assassinato de candidatos à presidência ou ex-presidentes (sem contar as inúmeras figuras com destaque político).

Assim, o atentado a Donald Trump, candidato à presidência dos EUA, no dia 13 de julho, pode ser lido sob esse prisma também. Outros dados revelam que a cultura de morte é uma regra social, com armas de grosso calibre sendo vendidas praticamente em qualquer lugar. Aliás, a própria Convenção do Partido Republicano, após o atentado do dia 13/07, prevê não haver restrição de ingresso dos simpatizantes com armas de fogo: o próprio atirador seria filiado ao Partido Republicano, o mesmo de Donald Trump.

Há muitas lições a serem retidas desse episódio, a começar pela peça publicitária transmitida ao vivo para o mundo todo: o tiro acertou parte da orelha de Trump, agora uma vítima do sistema do bonapartismo soft. Por sua vez, ao se levantar com sangue no rosto e punho erguido e serrado, gritando três vezes “Lutem, Lutem, Lutem!”, Donald Trump pôs fogo na extrema direita mundial: um ”nacionalismo globalizado” (sic). Mensagem mais clara impossível.

No Brasil, o bolsonarismo já se inflamou, seguiu para a Avenida Paulista, na Capital de São Paulo, e, em meio a meia dúzia de seguidores da política estadunidense, bradava “viva a América”. Sem se dar conta, é óbvio, de que a América é muito maior do que os EUA. Porém, isso de nada lhes importa, porque seu nacionalismo não tem a fronteira nacional e o Brasil é posto como apêndice dos EUA. É como se não apenas o ”complexo de vira-latas” fosse acionado com botões verdes e amarelos, mas, acima de tudo, fosse encarnado com orgulho: o orgulho nacional, para os seguidores do Trump vitimado pela violência que ele prega, está na reza que se faz para a bandeira dos EUA.

De modo pragmático, a eleição contra os democratas de Joe Biden – e seus visíveis problemas de saúde e de incapacidade de unir o partido em torno de si – parece resolvida. Como se diz na política das disputas, “se o atentado não tivesse ocorrido, alguém inventaria um jeito de fazer”. Por sinal, o uso da violência extremada parece até cartas marcadas no andamento atual da disputa eleitoral entre Biden e Trump, uma vez que o discurso de ódio extrapolou as expectativas: não são só os imigrantes ilegais que estão na mira da extrema direita nos EUA, mas as minorias em geral. Na verdade, a se confirmar um suposto “Projeto 2025”, tudo e todos que não se enquadrarem na compulsão de morte (desejo absoluto de matar ou morrer), no caos social, na miséria humana, na decadência da dignidade humana, serão condicionados à ideia (mirabolante) de “extrema esquerda” e, como tal, devem ser tratados como inimigos por essa extrema direita.

Faz muito tempo que os adversários abandonaram a seara política, porque tudo que não for espelho (do Fascismo reiterado) será abolido, sofrerá atentados dignos da pior inimizade. Esse é um traço secular do Fascismo que advém da Itália fascista de Mussolini.

No mundo todo, que já via a “onda fascista na Europa”, e no Brasil em especial – porque em 2024 já miramos 2026 –, não temos no atentado de Trump apenas um recado, mas sim um verdadeiro cenário político desenhado: os capacetes de alumínio, os viajantes do lado de fora dos para-brisas de caminhão, os fiéis que clamam por uma intervenção sideral (de Ets), as orações para pneus e tantos outros e outras deformações morais, cognitivas, retornarão mais fortes. Talvez mudem os nomes de seus expoentes, na cola do governador de São Paulo, por exemplo; todavia, o que não mudará é o desejo (hoje apenas contido) de repetirem os feitos dos seus mestres e agentes da tentativa de golpe de Estado, aquele do dia 8 de janeiro de 2023 – uma cópia da invasão do Capitólio dirigida após a derrota de Trump para Biden, diga-se. O moto contínuo desse Fascismo pós-moderno foi ativado, com largada na quinta marcha...

 

Referências

LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

 



[1] A inspiração para essa combinação de democracia com exceção vem dos seus clássicos, o Federalista: “Com o objetivo de estar preparado para qualquer acontecimento, é absolutamente necessário um governo dotado de “energia” [n. 37], um “Executivo forte” [n. 70], que saiba eventualmente até mesmo enfrentar o “desfavor” do povo e “seja capaz de impor a própria opinião com decisão e energia” [n. 71], um Executivo capaz de dispor, centralizadamente, de todos os corpos armados, inclusive, em caso de necessidade, “da Milícia de cada estado” [n. 69] (Losurdo, 2004, p. 99 – grifo nosso).

[2] “O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação, de reunião, de educação, de religião, etc., receberam um uniforme constitucional que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada “pelos direitos iguais dos outros e pela segurança pública” ou por “leis” destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública [...] A Constituição, por conseguinte, refere-se constantemente a futuras leis orgânicas que deverão pôr em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que não colidam nem entre si nem com a segurança pública [...] Como resultado, ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito, a Constituição: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas liberdades, e os democratas, que as reivindicam. Pois cada parágrafo da Constituição encerra sua própria antítese, sua própria Câmara Alta e Câmara Baixa, isto é, liberdade na frase geral, ab-rogação da liberdade na nota à margem” (Marx, 1978, p. 30 – grifo nosso).

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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