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Vinício Carrilho

Uma história política - homenagem a um livro


Uma história política - homenagem a um livro - Gente de Opinião

Falamos e fazemos política todos os dias, toda hora – até alguns sonhos são sobre política. O problema é que não nos damos conta disso. Sonhar com riqueza acordado pode ser alucinação – ainda mais se se é muito pobre. Porém, sonhar com riqueza, mas dormindo, pode revelar um inconsciente desejo de mudar a vida. Outro fato é que ambos os sonhos (dormindo e acordado) são profundamente ideológicos.

Também a ideologia é política ou expressa orientações políticas e essas, por sua vez, modificam, conduzem as ações de muitas pessoas que, a priori, nada tem a ver com os propagadores ou formuladores dessa ou daquela ideologia. Por definição, ideologia é uma “visão curta”, uma névoa, uma distorção da realidade – também pode ser uma mentira bem contada, por mil vezes.

Então, mesmo sonhando, faz-se política dormindo ou acordado. Sonhar com a política, essa que transborda a paciência em anos eleitorais, também revela muita coisa. Aliás, a revelação sobre fatos, circunstâncias, elementos, situações, é a política agindo contra a ideologia – tanto quanto a política exercida tanto pode revelar (descobrir) quanto ocultar e, neste caso, a política viraria insumo ideológico.

Muitas pessoas sonham com a política enquanto dormem, porque alguma coisa no cenário – naquele dia ou nos anteriores – trouxe algo relevante, marcante. Particularmente, nunca tive esse tipo de pesadelo, como tampouco sonhei em ser “político profissional”. Já tive funções eletivas, contudo, nunca investi numa “carreira política”. Se tivesse esse nutriente, teria sonhado acordado com a política.

Pensei nessa história, assim como poderia ter pensado em outras – incluindo a história política e a história da política: próximas entre si, mas não idênticas; portanto, diferentes entre si –, porque achei um livro depois de um mês de procura aqui na minha biblioteca.

É um livro muito antigo, comprado em sebo (como a imensa maioria dos que tenho) faz décadas e que tem uma história curiosa, comigo. Já li e resenhei, utilizei, em momentos e situações bem diferentes. Algumas vezes incluía a necessidade de uma abordagem bem básica para aulas de graduação.

Minha história com esse livro é antiga; mas, me lembrei de um fato mais juvenil. Com uns 20, 22 anos, estávamos na Capital, São Paulo, eu e outros jovens da mesma idade. A grana sempre foi curta, além da visão de mundo (que não é ideologia) nos levar aos sebos, valorizando os livros recomprados em alternância da posse.

Pois bem, num belo dia fomos a um dos sebos. Antigamente, eram centenas espalhados pela capital, hoje são raros. E lá cada um de nós tomou seu caminho no meio das estantes, das áreas e dos temas de maior interesse. Não compramos muita coisa, porque a grana ainda deveria render algum passeio no mesmo dia, porém, cada um comprou ao menos um livro usado.

O meu, naquele dia, e que achei hoje, chama-se A Ciência Política, de Marcel Prelot, publicado pela longínqua Difusão Européia do Livro em 1964 (o nome da editora tinha acento). Devo ter comprado por volta de 1986 – quando já lia um pouco melhor assuntos mais complexos.

Depois dos passeios, voltamos para casa e, não sei porque – provavelmente por sugestão de um dos tios –, fizemos uma aposta. Nem todas as apostas juvenis daqueles tempos eram saudáveis, pois havia um senso de competição em tudo e isso era horrível, pensando hoje.

Naquele dia, ao contrário da maioria das vezes, a aposta foi legal: apostamos quem conseguiria ler seu livro inteiro (com compreensão mínima) no menor tempo possível. Como os livros não eram do mesmo formato, do mesmo tamanho, fizemos uma estimativa para lermos mais ou menos a mesma quantidade de textos.

Na verdade, a aposta era para ver quem lia seu livro (estimando-se o tamanho dos textos) num prazo não superior a 10 horas. Por isso a aposta foi honesta, uma vez que havia a possibilidade de muitos ganhadores. Esse meu livro tem 117 páginas e foi lido em 10 horas.

Não me recordo exatamente, contudo, penso que todos nós conseguimos. No grupo havia meninas, mas eram crianças, e então não participaram do mesmo modo, ainda que tenham participado de alguma maneira da instigação às leituras.

É claro que não me lembrava de todo o conteúdo do livro, após as 10 horas de leitura. Me lembrava do suficiente, assim como os demais, para checarmos uns aos outros a fim de não haver nenhum engodo.

A competição e a leitura em si foram extremamente politizadas. No meu caso mais ainda, pois acabara de ler cem páginas sobre a Ciência Política (e a política, propriamente dita). Com os demais não foi diferente. E, no conjunto, penso hoje, inventamos ali, meio sem querer, sem premeditação, sem regras fixas, uma competição justa, premiadora de todos que lessem o seu bocado.

O objetivo não era derrotar ninguém, e ninguém foi derrotado, e é isso o que me faz pensar agora em outro tipo de regramento: pensar em situações nas quais as regras da vida pública (da política que nos organiza) tenham esse propósito, esse pressuposto: premiar a todas e todos que cumprissem suas metas, alcançassem seus objetivos, realizassem suas missões – sem ter derrotado ninguém.

A primeira regra seria simples: “cumpra seu papel, não derrote ninguém, para ser premiado”.

Em pouco tempo seria um Direito Humano.

A primeira missão que travaria hoje, por essas “novas regras”, viria enquanto educação pública que estimulasse fortemente as crianças e os jovens a lerem e estudarem “o que é política”, como suas vidas, nossas vidas, são formatadas por regras que desconhecemos, feitas por pessoas que muitas vezes não têm regra nenhuma, nada de ética, nada de responsabilidade, nada de bom a oferecer.

Com este exemplo e o desdobramento que dei à história – a interpretação política de hoje – também é fácil perceber que podemos “sonhar acordados” com a política. Afinal, toda vez que você pensar num mundo melhor, com pessoas melhores, dormindo ou acordado, você estará fazendo política. Esse sonho será intenção e ação, no futuro próximo ou na realidade imediata.

Penso que fizemos política naquele dia de 10 horas de leitura, assim como penso que estou fazendo agora, ao trazer uma história e um sonho, uma Utopia, por tempos melhores, por regras mais honestas e pessoas mais justas.

Essa história tem um pouco menos 40 anos. E me diz que a memória é altamente política, porque o que lembramos, como lembramos, ou já esquecemos, diz muito sobre cada um de nós – no passado e no presente.

É legal sonhar com isso e mais ainda quando posso compartilhar com você essa minha “sensação política”.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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