Sábado, 8 de outubro de 2011 - 18h36
Por William Haverly Martins
- Quem você pensa que é para ficar me dizendo verdades o tempo todo? A verdade incomoda quando funciona como um espelho da consciência, quando ela promove o encontro com nós mesmos, mas não pretendo me aprofundar filosoficamente ou cientificamente sobre a verdade, pois o mote destas minhas palavras é a mentira, a mentira que é contada com convicção, com a gesticulação de ator, com a ênfase de grandes intérpretes, a mentira que jura que é verdade, como os mitos e as lendas.
“Aqui se reúnem caçadores, pescadores e outros mentirosos”, durante muitos anos esta placa era o cartão de visita da lanchonete do J. Lima, no Mercado Municipal. Quando o sol trocava as telas no cavalete do horizonte, caprichando nos tons alaranjados, quando o estoque dos manjares regionais chegava ao fim, satisfazendo o paladar, o olfato, a visão e o desejo, sob a sombra das ingazeiras, os mentirosos se reuniam para a conversa informal do dia a dia, concorrendo com outro grupo, posicionado logo ali em frente, mas diferente no quesito fundamental: um era público e aceitava a ingerência e a participação de quantos quisessem, o outro era oculto e se desenrolava, cheio de pompa, entre as paredes do Palácio do Governo, pois suas mentiras não podiam alcançar as ruas, sob pena de perderem as tetas governamentais.
J. Lima era o mestre cerimônia de um grupo mais preocupado com os prazeres do ouvido do que com as esperanças incertas da política. Quem passasse a cem metros de distância ouvia do grupo a risada gostosa, subseqüente a cada “causo” contado com ares de verdadeiro. Rir podia, não podia era duvidar do contador. Nosso amigo Silvio Santos, conhecido pelas páginas do jornal como Zekatraca, deve se lembrar de muitos destes causos.
Eu conheço um professor da UNIR que até hoje jura de pé junto que é filho do boto, ele conta a história com os detalhes ouvidos da mãe lavadeira: o boto pisava macio, falava umas palavras bonitas, o chapéu escondendo parte da cabeça, a roupa branca impecável, sem um carrapicho sequer, ia se aproximando da beradeira com um sorriso maior que a boca e, quando menos ela esperava... Isto é, era assim que ela contava, mas, segundo o filho insigne, no calor da emoção e do desejo, era o que mais ela esperava: crau, crau (este era o som da relação naquela época, que deu origem ao créu, créu de hoje), nove meses depois, nascia o jovem branco sem características indígenas, puxado mais pra cearense do que pra caboclo, ou mais pra turco, dono de batelão, do que pra nortista. O pai, só era desconhecido na certidão de nascimento, isto dependendo da formação do tabelião, não estranhe se encontrares por aí uma certidão de nascimento, onde no local do nome do pai da criança esteja escrito: Boto Mitossilva de Olicrença.
De Mapinguari já ouvi muitas, mas a do Mapinguari encontrado numa madrugada de friagem, dentro de um barracão de seringal, não ouso contar com minhas palavras: - O bicho era enorme, de princípio achei que era um guariba, pelo tamanho me dei conta do engano, mas quando ele virou, dei de cara com aquele oião no meio da testa, refletindo o lampião a querosene que me pendia da mão direita, derrubei a luz que me alumiava e senti uma água quente se encachoeirando pelas coxas frias, não sabia se tremia, ou se corria, meus pés de chumbo decidiram por eles mesmos e ali me plantaram. A escuridão tomou conta do lugar.
Aos poucos o sangue foi voltando a sua caminhada natural, os nervos pararam de atormentar a tremedeira, espiei com mais vagar a cara do bicho, um palmo de oio preto, ele me encarou, uma neblina matinal invadiu o barracão, clareando o corpo peludo do monstro de mais de dois metros de altura, meu Deus! – gritou, olhando a gente nos olhos - ele estava segurando uma faca, deu dois passos na minha direção... – o contador olhou firme na cara da platéia e fez de conta que segurava uma peixeira de 12 polegadas, depois amainou o tom e os gestos - e só então percebi: havia um pão na outra mão e ele usava a faca para passar banha de porco no pão. Com o susto, desmaiei, quando acordei o povão do seringal se achegou para saber, como eu explicava os rastros do Mapinguari por todo o terreiro. Ninguém duvidou do ocorrido, as evidências estavam em toda parte, duvidaram da minha sobrevivência, creditada à ajuda do Anhangá, mas não me lembro de ter gritado, “Valha-me Anhangá”!
Esta última me foi narrada por um conhecido professor de matemática dos idos de setenta no colégio Dom Bosco. Uma linda garota, aluna do Maria Auxiliadora, com a qual namorara, morreu afogada, nas profundas, escuras e misteriosas águas do igarapé dos Periquitos, lá pras bandas do hoje bairro Ulisses Guimarães, nas terras do João Lobo. O resultado da autópsia popular foi claro e determinante, ela não se afogara, pois sabia nadar, foi vítima do choque de um poraquê gigante, velho morador daquelas águas sombreada de alimentos. Vai alumiar por alguns dias antes de encontrar o caminho da morada final.
No dia em que a moça completou trinta dias de falecida, a família encomendou missa na Capela do Colégio Maria Auxiliadora. O saudoso professor, repleto da angústia dos enamorados maltratados pelo destino, resolveu estender a homenagem, visitando o túmulo da amada, no Cemitério dos Inocentes. Enquanto serpenteava, com sua moto de 350 cilindradas, tonto de saudade, parou na porta do Dr. Samuel Castiel, na Rua Paulo Leal e pedir a D. Ana Helena algumas flores de seu jardim bem cuidado, para um buquê. Prontamente atendido, tão belo era o gesto de levar flores ao túmulo da amada, lá se foi, navegando suas lembranças pela Rua Campos Sales, depois Almirante Barroso. Estacionou a moto na porta do cemitério. Passos indecisos o levaram pela pequena ladeira ladeada de covas, de longe reconheceu o túmulo de alvenaria coberto de azulejos azuis, como que pela cor, denunciando a nova morada. No centro da construção celestial, um portentoso porta retrato de bronze ostentava o retrato sorridente da falecida.
Ajeitou o buquê perto do sorriso artificial da amada, ajoelhou-se reverentemente, rezou um pai nosso e três avemarias, sem esquecer-se de derramar lágrimas sofridas pela face embrutecida, áspera por fios grossos de uma barba mal feita, denotando um desleixo intencional, ocasionado por um amor precocemente desfeito pela malvada do ceifador.
Limpou as lágrimas com a rispidez dos brutos, espantando um resto de fraqueza de uma alma dúbia e se dirigiu para a saída. Ligou a moto! Percebeu que havia um peso a mais, os pneus baixaram além do normal. Ignorou e deu partida, mas aí sentiu que dois braços o envolviam pela cintura. Tremendo arrepio, vindo dos pés, percorreu o corpo todo, sentiu o calor de uma fêmea no cangote. Reconheceu o bafo perfumado de balas de hortelã. Perto de um delírio arriscado, nas imediações do Hotel Floresta, a sensação se foi, como que voltando aos seus limites, determinado pelas fronteiras dos muros da morte, ao redor do Cemitério dos Inocentes. Por muitos dias, sempre que passava em frente ao cemitério, sentia na garupa a presença da passageira, até se acostumou, mas, inexplicavelmente, desapareceu. Não chegou a contar os dias da presença inusitada e prazerosa a um só tempo, mas tem certeza que foram mais de vinte. Ela abandonou a garupa de sua moto no dia 2 de novembro de um ano qualquer. O amor é assim mesmo, adora ultrapassar limites, mas volta às barreiras do existencial, quando comprometido pela racionalidade.
A relação entre o sensível, o racional e o objetivo pretendido, coloca a verdade e a mentira no mesmo patamar, mentira aqui, vista como mito, lenda. Para além do racional, nas palavras do mestre Claude Lévi-Strauss, existe uma categoria mais expressiva e mais fértil, a do significante, que é a mais importante, a mais elevada forma de ser do racional.
williamhaverly@gmail.com witahaverly@hotmail.com
Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e graduou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e ocupa a cadeira 31 da ACLER – Academia de Letras de Rondônia.
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