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O mundo das aparências


O mundo das aparências  - Gente de Opinião
William Haverly Martins

As vestes não fazem o monge é um preceito considerado politicamente correto. No entanto, na prática, na contramão de seus próprios ensinamentos, ditos morais, a sociedade, pelos asseclas que a comanda via poder político, via poder econômico, valoriza as vestes, o apadrinhamento, as máscaras, o mundo das aparências. A meritocracia, o saber e o ser são meros detalhes na construção da pirâmide social. O que se divulga, como politicamente correto, pelas vias do comportamento social, tem se demonstrado politicamente incorreto.

A banalização da moral, no Brasil e em várias partes desse mundão, preocupa-me enquanto parte da matéria prima que molda a ética, sendo esta inerente ao caráter. Nunca se falou tanto em ética neste país. Os códigos éticos profissionais pipocam por toda parte. Virou moda. Gerando, no meio dos incautos, enorme confusão sobre os limites da moral e da ética, ou de que forma elas se entrelaçam para propiciar princípios ideais de comportamento humano. Vale lembrar que a moral é imposta, vem em forma de valores consuetudinários e nos entra de cima pra baixo, enquanto a ética é o filtro pessoal dos preceitos morais, é a reflexão subjetiva de um valor.

Sim, eu sei que ninguém nasce ético, a ética é algo que se aprende com a vida, vem da socialização, da humanização. Também sei da dificuldade de se dizer ético. Costuma-se propagar, a despeito de estudos mais profundos da filosofia, que ser ético é ter a capacidade de percepção dos conflitos entre o que o coração diz e o que a cabeça pensa.

Entretanto, em época de campanhas políticas, atemoriza-me a imposição da ética, como se os candidatos quisessem ensinar a pensar, a decidir. A reflexão ética, então, estaria sendo corroída pelos cupins da lavagem cerebral, via marketing político: os princípios éticos de justiça, igualdade de direitos, dignidade, honestidade, cidadania, responsabilidade e fidelidade estão sendo maldosamente modificados, direcionados, mastigados e regurgitados pelos manipuladores de opinião, deixando ao zé povo a fácil tarefa da ingestão/digestão, imaginem o cheiro dos dejetos.

Mas, a empolgação da campanha política me fez perder o fio da meada. Volto ao início: Uma fábula italiana conta uma história, não me recordo o autor, mas peço-lhe vênia para adapta-la ao meu nordeste: em tempo de seca e vacas magras, um sertanejo, aconselhado pela fome, saiu de sua casinha de taipa, deixando a mãe, a esposa e os filhos, e se dirigiu à cidade grande, com o intuito de conseguir comida, emprego, ajuda. Em lá chegando, vestido de trapos e com a “cara de ontem”, foi ignorado e apedrejado pela sociedade que pensava tratar-se de um perigoso assaltante. Triste e cabisbaixo, o trabalhador voltou pra casa e contou a história para os familiares, foi aí que sua santa mãezinha lembrou-se de um velho baú, onde guardava as roupas de um senhor de engenho que, milionário, partira para a Europa. Havia inclusive um par de vistosas botas. Ao voltar à cidade, bem vestido, barbeado e penteado, foi recebido com honras, salamaleques e muita comida, inclusive uns salgadinhos que ele, ora comia, ora oferecia ao paletó, às calças, às botas, ao chapéu, dizendo: “come, paletó, este gostoso salgadinho, é pra ti que eles estão oferecendo, não é pra mim. Come, botas, este quitute, pois foi pra ti que foi dado, não foi pra mim...”

O pobre aldeão voltou pra casa com os alforjes cheios de comida e a promessa de um emprego na prefeitura, onde ele não precisaria dizer, nem fazer nada, bastava se vestir bem, todos os dias, e portar o mais falso dos sorrisos. Sem entender a lógica da cidade, ele riu de inocência e felicidade, ganharia sem muito esforço e sem perder escrúpulos e caráter. Viveria a utopia social, sem entender que, quanto ao fim e aos efeitos, participaria de uma distopia social, com a valorização da nulidade e da preguiça que destrói a produtividade.

Esta semana me apresentaram um casal muito conhecido na sociedade portovelhense, “expert” na arte de se exibir, de se mostrar ao meio, com o intuito de lograr a admiração e o respeito de todos. Dizem que o casal é a panela e a tampa, lembram-se do casal de velhinhos incorporado por Chico Anísio e uma atriz global da qual não recordo o nome? “Estou mentindo Terta?”, perguntava o velhinho, e a resposta vinha imediatamente: “Tá não, meu veio, verdade!”.

Pois é, o referido casal, quando pode, viaja aos points de turismo mais desejados pela classe média ignara e volta cheio de histórias e fotos. Em Miami, certa vez, ele entrou numa loja de relógios suíços e pediu à esposa que o fotografasse entrando na loja. Em seguida, que o fotografasse experimentando o relógio mais caro da loja, depois saiu sem nada comprar, mas o registro das fotos dava a impressão que ele havia comprado. Hospedava-se num hotel de terceira categoria e fotografava a fachada e a portaria de um cinco estrelas, deixando a babar os companheiros de noitada e colegas políticos, na Calçada da Fama. As más línguas testificam que a esposa, à duras economias, conseguiu comprar uma bolsa Louis Vuitton: a bolsa funcionava como carteira de identidade, na esteira da Polícia Federal dos aeroportos, a etiqueta estava sempre voltada para cima, como se dissesse: “olhem todos é uma Louis Vuitton, eu não sou qualquer uma”. Na antiga Expovel, eles compraram uma picape Hilux cabina dupla em sessenta parcelas, o desejo de consumo de dez entre dez cidadãos rondonienses, mas exigiram uma placa vistosa durante o tempo da feira: Vendida ao Senhor e Senhora Beltrano.

São muitas as histórias deste excêntrico casal, as mais pessoais não vou contar, porque corro o risco de identificá-lo e não é esta minha intenção, mesmo porque sei que ele é produto da sociedade capitalista de consumo. Vítima/adepto da hipocrisia social e da ética do dinheiro, tão comuns ao mundo de hoje. Quem não é hipócrita? Na periferia é costume a gente ver uma casinha de madeira, com uma garagem improvisada, abrigando o carrão das aparências. Para o filósofo Luiz Felipe Pondé a substância última da moral pública é a hipocrisia.

O escritor irlandês, Oscar Wilde, no século dezenove, asseverou, com a autoridade a ele conferida por milhares de leitores, que um ser visto na sua verdade plena é obsceno. As vestes não fazem o monge, mas pela carruagem sabe-se quem vem dentro, qual dos aforismos populares é uma verdade consolidada no capítulo da vivência/convivência? Com certeza o conhecido casal das noites portovelhenses é adepto da carruagem. Não se julga o comportamento humano, como se fosse uma equação matemática...

williamhaverly@gmail.com

Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e licenciou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e vice-presidente da ACLER – Academia de Letras de Rondônia, onde ocupa a cadeira 31.             

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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