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ACRM

O OLHAR DA LITERATURA


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William Haverly Martins

 

Ela me olhava intensamente. Os olhos me fitavam estabelecendo uma eloquência de silêncios, como se quisessem me dizer algo que a gente só consegue expressar no mundo da mudez absoluta: um raio de pensamentos estéticos telepáticos ecoava em meus sentimentos, assanhando-me o desejo.

Às vezes a veemência do facho era tão insolente que eu virava o rosto, desviando meus olhos castanhos da negritude de um olhar comprometido, mas o impacto silencioso arrepiava-me a pele. Não adiantava, bastava voltar ao canal que se estabelecera entre nós e lá estava ele, clareando ou tumultuando meu futuro, a me mostrar um caminho de cartas de tarô: indefinido, como o paradoxo do destino.

Estava decidido a não ceder, não cederia. O condicional me atormentava porque me deixava brechas de possibilidades, seria melhor dizer a mim mesmo: não cederei. Mas eu não possuía a força que determina o futuro, o máximo a que poderia chegar era construído a partir da minha certeza de valorização da amizade.

Pode-se até trair um amor, a mim era doloroso a hipótese de trair um amigo. Sobraram-me tão poucos depois das desavenças patrimoniais. Na realidade não sobrou nenhum, sequer um, tão carente de capital são os relacionamentos. Os de agora voltavam de outrora, mais da relação professor aluno do que de uma interação intimista e solidária. A carência os enxergava como amigos, aprazia-me pensar assim. Os verdadeiros ficaram às margens da juventude, em outro espaço, no nordeste do mapa, à deriva da vida.

E ela não parava de me olhar, em breve rasgos de instantes, flexionava os músculos da face, adicionando riso e malícia aos olhos, incomodando-me o corpo e a mente: a cadeira passou a ter espinhos, eu me virava pros lados, as pernas abriam e fechavam, como se atingidas por uma descarga elétrica leve. Tamborilava um samba da memória com os dedos sobre a mesa e conversava sem parar, não permitindo aos pensamentos que se organizassem na direção do laser, invisível aos outros: se... sucumbiria.

Entre homens e mulheres, éramos sete, eu, o único solteiro, à mesa. Talvez a minha solidão momentânea houvesse incentivado os devaneios devassos da bela jovem que acompanhava um dos meus recentes amigo. Não tenho dúvida de que se tratava do mais lindo rosto daquele encontro não programado, decorrera de uma reunião de associação cultural: comemorávamos um feito!

As cervejas se multiplicavam, cheguei a me pensar entre as bolhas do gás carbônico que subiam pelo amarelo do líquido embriagante, invisíveis ganhavam o nada, como meu desejo de sair de mansinho sem ser visto, sem ser questionado. O pecado, de conluio com a ilusão, se prostrou na fronteira da verdade, usando o álcool para me encorajar. A sensibilidade me aflorava à pele em brotoejas picantes: hormônios da imaginação, masculinos e selvagens, instigavam-me o retorno ao tacape e à mulher/res.

Senti uma pressão na bexiga, era iminente ir ao sanitário. Vagarosamente me desloquei, olhando para o chão, consertando as calças e a camisa, não percebi que ela também se levantara. Portas conjuntas facilitaram as manifestações do desejo. Na saída, o encontro foi inevitável: ela balançou os cabelos finos a lhe macularem a face, desnudando o sorriso que mascarava sussurros inquietos. Brecou minha passagem, oferecendo-se na plenitude de sua jovial convicção: “ele não resistirá”. O coração pulsou-me na garganta, no compasso da emoção, doido pra se ofertar por inteiro àquela aventura que se prenunciava ardente.  

O chumbo se incorporou aos meus pés, impossibilitando-me o desvio. Ficamos frente a frente, permiti o encontro de nossos olhos gulosos. Seus lábios se abriram em flor, em cumplicidade com o meu desejo. É horrível quando você quer, mas a decisão não é sua, você sente na alma a manipulação do sexo oposto. Começava ali uma jornada onírica atemporal. O cheiro de violência, temperada de sexo, congestionou o ambiente, em decorrência do triângulo amoroso, anunciado no prenúncio do enredo: ouvi o estampido de um disparo. Procurei o vermelho em minhas vestes. O fato e a versão, como partes da história, conduziam as maquinações da criação, por meus dedos sobre o teclado da sedução fluíam emoções.

Aturdido, passei-me as mãos pelo corpo, só então me dei conta, havia uma criatura estendida no chão. A paixão escorria-lhe, escrevendo em linguagem própria o que lhe fora negada pela intolerância, o rosto voltado para cima: a perfeição assimétrica da face contorcia-se em dores, no estertor da vida. Inconformado, tomei-a nos meus braços, o perfume que há pouco confundira meus sentimentos, ainda exalava de seu corpo inerte.  Lágrimas de protesto rolaram-me impotentes, melei meus dedos no sangue vivo e risquei minha face com traços paralelos: tal pele vermelha me preparava para os confrontos. Um mundo de gente circundava minhas intenções. A literatura mexe com as emoções, transfigurou meu destino: éramos unos, transcendendo.

Escrever é perigoso, assoprou Clarice Lispector aos meus ouvidos. Ignorei em nome da força intrínseca do ato de escrever, achando-me forte, mas não controlei o tremor das mãos ao teclado, a arritmia, as lágrimas e a imperiosa vontade de ser protagonista.

Angustiado, percebo que as janelas e porta de meu quarto estão fechadas, está escuro, mas não paro de escrever: as palavras estreladas emitem luz, quiçá da arte. Meu notebook ilumina-me a missão, carente de autenticação da literatura, desconheço minha identidade, sou e não sou nas personagens que brotam de minha pena.

O beijo que me atingiu certeiro, a bala que ceifou minha possível amante, provieram da solidão de meu quarto, onde começou e continua a história narrada na primeira pessoa: pelas chagas da linguagem buscam o outro. Escrever é sempre a tentativa desesperada de se alcançar o leitor, alguém que acabe com a angústia da solidão das palavras escritas, arranjadas com o intuito literário de seduzir.

williamhaverly@gmail.com

Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e graduou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e vice-presidente da Acler – Academia de Letras de Rondôna, onde ocupa a cadeira 31.   

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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