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SAUDADES DO FUTURO


William Haverly Martins

No giro da roda do tempo, a gente gosta, de vez em quando, de sentar numa cadeira de balanço e se imaginar no timão da vida, como se fosse o dono do destino. Acionar o botão do passado é fácil, apesar das limitações do exercício da memória. Analisar o presente também não implica grande esforço, mas as incursões ao futuro dependem do acionamento do botão “ajuda”, aparece, então, na retina, uma série de links nem sempre merecedores de confiança: astrologia, numerologia, tarô, cartas ciganas, filmes de ficção científica, literatura enquadrada nos moldes juliovernianos, profecias de Nostradamus, a certeza da eternidade e um severíssimo exercício da imaginação. Para mim é impossível sentir saudade do futuro, faltam-me os atributos cerebrais da premonição, capazes de me levar ao futuro e me trazer de volta ao presente imbuído de nostalgia, mas para o meu neto de 10 anos, nada mais simples:

- Oi meu filho, tudo bem? Por que os olhos no horizonte? Está pensando?

- Fala sério, vovô, estou com saudade do futuro.

- E isto é possível? Como a gente pode sentir saudade do que não viu, do que não

   sentiu?  

- Se liga, vovô, a gente chega ao futuro seguindo as pegadas do presente.

Silenciei, recolhendo-me a minha santa ignorância, abstendo-me de discutir os próximos lançamentos na área dos games, capazes de catapultar a vivência da expectativa ao futuro e promover o retorno ao presente, impregnado de saudade. Saí de fininho, deixando meu querido neto perdido no seu silêncio futurologista, mas deixei que a razão enveredasse por outro caminho e buscasse em mim as pegadas do presente, entreabrindo os avanços da medicina: a cura de todos os tipos de câncer, a implantação de microchips no cérebro, pílulas pra tudo, da matemática à fé.

Diabetes, obesidade, os males do coração, tudo está bem encaminhado para uma solução no futuro próximo, sem que percebesse uma sensação estranha assomou meu corpo e decodifiquei como saudade do futuro, ou saudade dos entes queridos que já se foram porque o tempo e os males da vida não lhe permitiram que chegassem ao futuro.

Depois me lembrei dos passeios à Lua, ao planeta Marte, da preservação da natureza, da tecnologia para aproveitamento da água do mar, das novas fontes de energia elétrica, do fim da fome, da paz no mundo, esta poderia ser resolvida com o fim das religiões, mas é um futuro mais complicado, está no rol das surpresas, o homem nunca abandonará a sua capacidade de surpreender, surpreenderá...

Diante das minhas limitações, resolvi que o melhor era gozar, rir e falar com a lembrança, na solidão da cadeira de balanço: girar a roda ao contrário, incorporar os pés do Curupira, desfrutando de instantes que marcaram a memória, despertando no presente o sentimento da saudade.

Será que alguém se lembra de uma briga familiar com saudade, eu me lembro, porque hoje, acompanhando os ensinamentos de grandes psicanalistas, posso compreender que meu ódio era uma forma de afeto.

Um carretel de filme Super 8 foi se desenrolando da memória e localizei na fita cenas engraçadas da minha adolescência, refiz a fisionomia dos brotos que freqüentavam os assustados da década de sessenta, “assustado” era o nome que a gente dava a uma festinha na casa de um amigo, em cada sábado acontecia na casa de um amigo diferente. Um sorriso maroto transferiu alegria a todo o corpo, acelerei o compasso da cadeira de balanço, passando a fita e encontrando: troca de olhares, o hálito perfumado de chicletes Adams, o ar impregnado do cheiro do sabonete Phebo, o corpo cheirando a loção Lancaster, mãos dadas e o arrepio gostoso na hora de se mostrar, dançando o Twist com passos livres ou cadenciados, requebrando os quadris na dança da paquera, como se o macho quisesse atrair a fêmea para a magia do amor, sob a voz melosa de Celly Campello.

Sob um banho de lua, numa noite de esplendor

Sinto a força da magia, da magia do amor

É tão bom sonhar contigo, oh! Luar tão cândido

Tomo um banho de lua, fico branca como a neve...

Voltando, voltando a roda do tempo e desenrolando a fita cheguei à pré-adolescência, na idade de meu neto, virei saudosista porque as lágrimas me descobriram numa oficina improvisada no quintal da minha casa no interior da Bahia, ali eu fazia meus carrinhos de madeira com serrote, martelo e pregos.

Não havia plástico, mas havia lata e com latas de leite eu fazia carros de passeio, amarrando duas latas uma atrás da outra, cheias de areia e presas por um arame que atravessava furos feitos nas circunferências laterais, era uma picape, de três latas em diante já era uma carreta. Pião, gude, arraia (pipa), baleado, festejos juninos, luta de espada de madeira e barquinhos de papel depois da chuva freqüentaram a minha infância.

Não sei se fui mais feliz, porquanto impressiona o brilho nos olhos da infância/adolescência de hoje, quando se depara com as jóias da eletrônica, da informática, a ponto de um adolescente chinês, desconsiderando os ensinamentos da Revolução Cultural de Mao, vender um rim, a preços módicos, para comprar an Apple by Jobs. Confesso que eu também me impressiono e nem me arrisco a visitar o futuro desta jornada, Steve Jobs, antes de falecer, disse que deixou guardadas quatro gerações de tablets. O Facebook, por sua vez, contribuiu para a revolução dos países árabes do norte da África, nesta área, intimida-me a ousadia de uma incursão futurista.

Num cantinho especial da fita e sob minha direção para um filme de 35mm apareceu a cena de uma brincadeira de tirar o fôlego, me lembro da rapidez do sangue percorrendo o corpo, a brincadeira se chamava estátua e consistia no seguinte: três ou quatro casais se posicionavam sobre um banco da praça e uma das adolescentes permanecia embaixo com a incumbência de ir puxando pela mão, alternadamente homem, mulher, e ao ser puxado caía no gramado e ficava totalmente imóvel, como estátua a espera da parceira. O segredo da brincadeira era a posição assumida no momento da queda, quase sempre se tocando, olho no olho, respiração ofegante, o calor dos corpos a sugerirem maior aproximação, uma sensação gostosa que grudou na memória. O casal que permanecesse maior tempo imóvel ganhava a brincadeira, uma vez eu perdi porque fiz a opção por um beijo, meu primeiro beijo.

Quando a fita chegou ao fim, me esforcei para ler, na memória e nas informações que me chegavam no dia a dia, o nome e o destino dos protagonistas. Muitos já partiram, alguns vítimas de doenças hoje curáveis, outros estão no leito de morte, olhando para o futuro, não com saudade, mas com esperança de alcançarem a cura para os seus males. Mas a maioria, como eu, está bem, embora grudada no futuro, na esperança de que o tempo se alongue um pouco mais e possa proporcionar neste enlace de passado, presente e futuro, o desfrute de um sentimento comum a todos os humanos, mas só registrado, decodificado pela palavra do idioma português: Saudade!

 williamhaverly@gmail.com     witahaverly@hotmail.com

Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e licenciou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e ocupa a cadeira 31 da ACLER – Academia de Letras de Rondônia.             

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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