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SONHO DE UMA TARDE DE VERÃO NA PORTO VELHO DE OUTRORA



Por William Haverly Martins
 

Eu! no limiar dos sessenta, Ela! lutando contra as evidências dos cinquenta, ambos com o olhar invertido dos curupiras, na estrada longa da juventude de outrora. O tempo nem sempre jogava limpo: voava, quando estávamos juntos, andava à tartaruga, na expectativa de um encontro marcado, mas não parava, obedecendo meus desejos de cliqueGente de Opinião fotográfico existencial, no instante de um beijo.

Entre nós havia um diário com a trajetória do namoro e muitos papéis de sonhos de valsa colados às páginas mais picantes e poéticas: o dia do primeiro olhar, do passeio de mãos dadas, do beijo aparentemente roubado, do bolero no clube Ipiranga, da troca de carícias, das promessas e dos sonhos, muitos sonhos. De vez em quando um destes sonhos vence o sabor do chocolate, ensaia passos de valsa, salta das páginas amareladas do diário e volta a nos fazer companhia, como o de passear pela Europa antiga, de mãos dadas, entre ruas estreitas, becos, calçadas de pedras milenares, construções da idade média, castelos seculares e assimilar a convivência com o novo, o moderno, o contemporâneo: o Velho Continente, de onde brotaram versos, peças, prosas e composições que venceram o tempo, continua na pauta de um sonho encarcerado no diário comum de uma vida a dois.

A lógica comercial, quando bem aplicada, perdura: - juntar a história do chocolate, manipulado pela civilização asteca, antes de chegar à Europa, com a valsa que surgiu em Viena, antes de receber o aprovo de inúmeros compositores do velho continente, para ganhar a preferência popular, nos quatro cantos do mundo – foi uma jogada de mestre, como se a interpretação de um delírio adolescente feminino, no momento do rodopio de uma valsa de quinze anos, com pedaços de chocolate na boca. Indescritível para nosotros, machos da espécie, mas imaginável para quem conviveu com a sensibilidade do sexo oposto e possui o dom mágico de passar para o papel, para a tela do computador, o que o canal da lembrança nos dita.

A Porto Velho dos anos sessenta/setenta era uma cidade relativamente pequena, comedida nos modos, nas ações e nos sonhos, onde as coisas e as notícias demoravam a chegar. As ideias fervilhavam pelo mundo, alimentando um caldeirão de fantasias marxistas que passavam necessariamente pela extinção das classes. Por aqui, a reflexão de pontos de vista acompanhava a placidez do Madeirão no rumo do mar, nem o fim da EFMM mereceu mais do que um apitaço de locomotivas e as lágrimas dos que sabiam o valor das raízes, simbolicamente arrancadas pela estupidez do lucro a qualquer custo.  Em 1968 o mundo ia explodir. O jovem lutava em todas as frentes para destruir o Gente de Opiniãovelho e impor o novo: “Já se disse que os moços são capazes de dizer o que querem, mas sabem claramente o que não querem. Não querem essencialmente a rotinização da existência, seja ela de sentido capitalista ou comunista”. (Marialice Foracchi).

A vidinha simples destas paragens do poente não se ligava muito nas fervuras mundiais do caldeirão social, tampouco se comovia com as pretensões hippies, ou o consumo de ácido lisérgico. Estávamos mais pra Mariri do que pra LSD. Seguíamos os passos de Erasmo Carlos: - Hey, Hey, Que onda! Que festa de arromba! - No Danúbio Azul, no Bancrevea, no Ipiranga e no Ferroviário.

Sim, havia os categas do látex, da cassiterita, os comerciantes, os profissionais liberais, no entanto as distâncias classistas cabiam numa mesma rua, onde conviviam cutubas e peles curtas. De uma casa a outra, os sonhos não se diferenciavam tanto e podiam-se ouvir as mesmas músicas de uma Jovem Guarda em evolução: cantávamos e rimávamos inverno com inferno, numa cidade onde não existe frio, mas o calor humano é capaz de produzir o suor mágico que aproxima distâncias: - e que tudo mais vá pro inferno...

Neste ponto, me desarmo de idealismos e filosofias, assumo minha pena de pouca penugem, volto ao princípio, para concluir, sem deixar vestígios de mágoas saudosistas, no embalo da circunferência perfeita: era uma vez duas colegas do Instituto de Ensino Maria Auxiliadora, Eni Castiel e Gracimeire Gaspar Lima, esta gostava de ser convidada para estudar na casa da outra de mais posses e o que mais movia a vontade de um sentimento humilde, além do calor da amizade, era a fartura de “sonhos de valsa” que a professora Marise Castiel deixava “à la vonté” num pote sobre a mesa, a mesa do sonho de uma tarde (ou seria noite?) de verão, sem as fadas e os elfos destrambelhados de Shakespeare, mas com os mitos amazônicos protetores de relacionamentos de boa cepa.

Para Viriato Moura e Sandra Castiel, comedores de sonhos de valsa e parceiros na arte de gerar crônicas.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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