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Gente de Opinião

Antônio Cândido

A COBRANÇA DE JOSÉ CALIXTO DE MEDEIROS


 
Antônio Cândido da Silva

Houve um tempo, antes do cruzeiro virar cruzado por obra e graça do presidente José Sarney, em que a inflação chegando à beira do absurdo, corroia vorazmente as finanças dos poucos brasileiros que tinham algum dinheiro.

Um belo dia, ou melhor, uma bela noite, apareceu em minha casa acompanhado de dois outros amigos, a figura ilustre de José Calixto de Medeiros preocupado com a minha ausência nas duas últimas reuniões da Academia de Letras da qual era ele o presidente.

Lá pelas tantas, depois de comerem fatias de um “bolo moca” feito por Dona Maria (este sim o melhor bolo moca da cidade) acompanhado de refrigerante, saíram os três, oficialmente, com destino ao feliz recesso de seus lares.

No dia seguinte ao passar pela varanda onde estivemos conversando na noite anterior, deparei-me com uma carteira tiritando de frio e rezando, quase sem voz, para que o sol viesse aquecer o seu couro envelhecido pelo entrar e sair do bolso da calça de um dono pobre.

Como eram três os visitantes, abri a carteira para uma perfeita identificação, encontrando os seguintes pertences: alguns papéis com endereços e anotações, cópias de documentos, uma folha de trevo de quatro folhas plastificada (para dar sorte) e a mísera quantia de Crs-3,10, para os mais jovens “três cruzeiros e dez centavos”, que não chegavam sequer para comprar um caixa de fósforos Fiat Lux.

Considerando os documentos, a pobreza e a sorte que o trevo de quatro folhas, até então, se negara em proporcionar, descobri que o dono da carteira era mesmo José Calixto de Medeiros.

Investigação concluída apressei-me em comunicar ao dono para que ele fosse buscar o seu valioso pertence e, depois de algum tempo, me pareceu estranho o desinteresse do proprietário pelo objeto perdido.

Dois meses depois, aproximadamente, fiz a mim mesmo o favor de me livrar da tal carteira, levando-a pessoalmente, ao destinatário acompanhada das seguintes quadrinhas:

Calixto...

Devolvo a tua carteira
com tão mísera quantia
porque tão poucos cruzeiros
não chegam a ter serventia.

No entanto, pelo tempo
que a deixaste em minha mão
espero do nobre amigo
alguma compensação.

Tua carteira ocupou
em casa um compartimento
por isso deves a taxa
pelo armazenamento

Cândido.

Algum tempo depois recebi uma correspondência em envelope lacrado, sem a identificação do remetente, e para minha surpresa, tratava-se de uma cobrança descabida porém, interessante. 


DEVOLUÇÃO

Para Antônio Cândido

Meu caro,
Cândido amigo,
acuso o recebimento
da carteira que mandaste,
recheada de proventos:

Três mil e tantos cruzeiros
humildes,
quietos,
tranquilos,
a repousarem lá dentro.

Sinceramente obrigado
pela tua gentileza
fazendo a devolução.
Mas não falaste de juros
nem também de correção.

Foram bem sessenta dias,
o meu dinheiro contigo.
E hoje me vem sozinho,
dos réditos ao desabrigo.
Não é que queira cobrar,
nem de ti questionar,
já que nós somos amigos

Mas amigos são amigos.
à parte ficam os negócios.
Ficando lá as merrecas,
sem remuneração qualquer,
o prejuízo, na certa,
foi-se tornando meu sócio.

Sendo o meu dileto amigo
homem de perfeito siso,
por certo não vai querer
causar-me tal prejuízo.

Creio na tua lisura,
porque liso sempre foste,
como liso aqui eu sou.
Porém, como bem entendes,
é questão de conjuntura.
a carteira veio dura,
na correção que faltou.

Vê, não é uma cobrança.
é apenas um apelo.
corrige os tristes cruzeiros
aqui deste pobre amigo.
Ficarás em paz contigo.
E com essa correção,
alivias teu irmão
de eterno pesadelo.

Ser pobre é uma dureza,
terrível caminho estreito.
Lembra aí, meu amigão,
que, no caso, a correção
é uma questão de direito.

...calixto...

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