Quinta-feira, 1 de abril de 2010 - 14h31
Até aí, tudo bem.
Mas o que me intrigou foi como a notícia foi levada ao público, pois dizia, categoricamente, que “com isso o Brasil estava resgatando um compromisso histórico, ao procurar pagar uma dívida contraída desde a assinatura do Tratado de Petrópolis, em 1903”.
Como não bastasse, encontrei na internet, artigo produzido pelo DNIT sob o seguinte título: DNIT anuncia decreto legislativo aprovado pelo Senado para a construção da ponte sobre o rio Mamoré, inclusive, com declarações do diretor de Planejamento e Pesquisa do Departamento Nacional de Infra-estrutura e Transporte, DNIT, Miguel de Souza.
O artigo em questão repetia o que foi dito pela imprensa local, da seguinte maneira:
A. modificação a que se refere o Artigo anterior consiste em aplicar o auxílio de um milhão e de libras esterlinas, ouro, estipulado no Artigo V do Tratado de 25 de dezembro de 1928, e nas notas reversais de 30 de agosto de 1929 e na construção de uma linha. férrea que, partindo de um ponto convenientemente escolhido entre Porto Esperança e Corumbá, vá terminar na cidade Santa Cruz de la Sierra.
A contribuição pecuniária de um milhão de libras, ouro, será aplicada, parceladamente, no pagamento das despesas de construção da linha férrea de que trata o Artigo anterior à vista das folhas de medição das obras executadas, organizadas trimestralmente pela Comissão de estudos criada pelo Protocolo de 25 de novembro de 1937, e sujeitas à aprovação do Governo da Bolívia, de acordo com o Governo do Brasil. A importância de cada folha de medição trimestral, convertida em libras, ouro, será posta pelo Governo do Brasil à disposição do Governo da Bolívia, em um Banco de Londres, dentro do prazo de trinta (30) dia contados a partir da data da respectiva aprovação.
ARTIGO IV
Tendo em vista que a contribuição de um milhão de libras, ouro, a que se refere o Artigo precedente, é insuficiente, segundo cálculo técnicos, para construir toda a linha férrea que deverá ligar o território brasileiro a Santa Cruz de la Sierra, o Governo do Brasil assume o compromisso de adiantar, oportunamente, ao Governo da Bolívia a quantia suplementar, que se fizer mister, para a sua integral construção, depois de submetidos à sua aprovação o projeto e o orçamento das obras que ainda forem necessárias para ultimar a construção da mencionada linha férrea. O adiantamento desta importância será feita pelo pagamento de folhas de medição das obras executadas, organizadas trimestralmente, na forma indicada no Artigo precedente.
O Governo da Bolívia reembolsará o Governo brasileiro das quantias que por este forem adiantadas para a conclusão da estrada de ferro e para os gastos gerais com os estudos a que se refere o Artigo X, acrescidas dos juros simples de 3/2 (tres e meio) por cento ao ano, computados sobre os saldos divedores, em 20 (vinte) prestações anuais, ou em menor prazo a seu juizo, em libras esterlinas, ouro, ou em quantidade equivalente do petróleo bruto ou gasolina, posta em Corumbá ou outro ponto da fronteira brasileira, ao preço corrente desses produtos nos centros de produção. Servirá de garantia ao adiantamento da importância efetuada pelo Governo do Brasil, para a terminação da estrada de ferro até Santa Cruz, alem da contribuição do milhão de libras esterlinas, ouro, o produto da exploração das zonas petrolíferas que atravesse ou a que chegue a referida estrada de ferro.
Chegamos à conclusão de que o governo brasileiro além de estipular as condições de pagamento da indenização pela troca do ramal Vila Murtinho/Vila Bella, assumiu, também, a responsabilidade de emprestar à Bolívia a quantia necessária para construção da linha férrea que ligaria o Brasil a Santa Cruz de la Sierra.
Passou o tempo, a ferrovia boliviana foi construída e a responsabilidade pela construção do “ramal ferroviário Vila Murtinho/Vila Bella” deixou de existir, colocando um ponto final na obrigação assumida pelo Brasil com o Tratado de Petrópolis de 17 de novembro de 1903.
A extinção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré através do Decreto 58.501, de 25 de maio de 1966, ressuscitou o antigo Tratado de Petrópolis, levando os governos do Brasil e da Bolívia a assinarem, em 27 de outubro 1966, na cidade do Rio de Janeiro, um Protocolo Adicional ao Tratado de Petrópolis, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 41, de 21 de novembro de 1967, que em seu Artigo – IV diz que: [2]
O Embaixador do Brasil, Cláudio Garcia de Souza, recebeu do Embaixador da Bolívia (na troca de notas) a nota n. 1392 que deixamos de apresentar porque o seu conteúdo, já traduzido para a língua portuguesa, foi transcrito na nota brasileira de n. 176, como veremos a seguir:
La Paz, em 25 de setembro de 1971
Tenho a honra de acusar o recebimento da nota nº 1392, de 25 do corrente, cujo teor é o seguinte:
“La Paz, 25 de setembro de 1971.---Nº 1392. Senhor Embaixador: Tenho a honra de dirigir-me a Vossa Excelência com o propósito de comunicar-lhe que o Governo da Bolívia, pelo Decreto Supremo nº 09923, de 24 do corrente, ratificou o Protocolo Adicional ao Tratado de 1903, assinado entre nossos Governos a 27 de outubro de 1966. ---Outrossim, levo ao seu conhecimento o assentimento de meu Governo ao pedido formulado pelo ilustre Governo de seu país no sentido de que, no quadro do referido Protocolo, seja suspenso imediatamente o funcionamento da Ferrovia Madeira-Mamoré, tendo em vista sua substituição pela rodovia Guajará-Mirim – Porto Velho.
Ademais, com referência ao mesmo acordo e às conversações sustentadas durante a primeira reunião da Comissão Mista Boliviano-Brasileira de Cooperação Econômica e Técnica, realizada em agosto último, meu Governo está de acordo com o oferecimento formulado pelo Governo brasileiro no sentido de:
1- Assumir o compromisso de construir sem reembolso uma ponte sobre o rio Mamoré, entre as cidades de Guajará-Mirim (Brasil) e Puerto Sucre (Bolívia), segundo o disposto no Protocolo Adicional de 1966.
2- Encarregar-se da realização dos estudos de factibilidade e, de acordo com eles, do projeto de engenharia da rodovia La Paz-Cobija, prevista na Ata de Rio Branco, de 29 de janeiro de 1969.
3- Estudar a possibilidade de prestar sua cooperação ao Governo boliviano para lograr a construção da rodovia Riberalta - San Borja.
4- Assumir o compromisso de construir sem reembolso uma ponte sobre o rio Acre, entre Brasiléia e Cobija.
5- Estudar a possibilidade de construir uma ponte sobre o Arroio Conceição, entre Porto Suarez e Corumbá.
Para finalizar, devo expressar a satisfação de meu Governo com o propósito do Governo brasileiro de manter a rodovia Guajará-Mirim – Porto Velho em condições de tráfego permanente, bem como de efetuar a sua pavimentação o quanto antes, conforme o exija o aumento de volume de trânsito e deixando constância expressa de que mencionada pavimentação deverá realizar-se antes de cumprido dez anos da assinatura do presente compromisso.
Ao manifestar a Vossa Excelência que esta Nota e a Reversal que tenha a bondade de dirigir-me serão consideradas pelo meu Governo como um acordo sobre a matéria, aproveito a oportunidade para renovar-lhe os protestos da minha mais alta e distinta consideração. Assinado Mario Gutierrez Gutierrez. Ministro das Relações Exteriores e Culto.
Ao Excelentíssimo Senhor D. Cláudio Garcia de Souza, Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário do Brasil. Nesta.”
2. Em resposta, me apraz manifestar a Vossa Excelência que meu Governo está de acordo com os termos da nota acima transcrita.
Tem-se a impressão de que o Embaixador Cláudio Garcia de Souza não tomou conhecimento do Protocolo Adicional, assinado pelo Embaixador Juracy Magalhães, ao concordar, sem nenhuma restrição, com o item 1, da Nota 1392 do Consulado boliviano, quando diz que o Brasil assumiu o compromisso de construir “sem ônus” a ponte sobre o rio Mamoré, “segundo o disposto no Protocolo Adicional de 1966.”
Em verdade, o Artigo IV do citado Protocolo diz que: As Altas Partes Contratantes coordenarão seus esforços para o “financiamento dos estudos e construção” de uma ponte sobre o rio Mamoré...
Chega-se à conclusão de que os interesses do Brasil não foram defendidos como deviam, na reunião da Comissão Mista Boliviano-Brasileira de Cooperação Econômica e Técnica, realizada em agosto daquele ano, e na reunião de Rio Branco, realizada em 29 de janeiro de 1969, pois o Governo Boliviano, usando a erradicação da ferrovia Madeira-Mamoré, soube tirar proveito em benefício próprio, como a construção de uma ponte sobre o rio Acre (Brasiléia / Cobija) e a “cooperação” do Governo brasileiro na construção das rodovias La Paz/Cobija, Riberalta/San Borja e estudar a possibilidade de construir uma ponte sobre o Arroio Conceição entre Puerto Suarez – Corumbá.
O certo é que o Protocolo Adicional ao Tratado de Petrópolis, assinado em 1966, foi promulgado através do Decreto n. 73.413, de 4 de janeiro de 1974 e, com base nele e nas Notas Reversais de 1971, aqui apresentadas, o Brasil e a Bolíiva assinam, em 14 de fevereiro de 2007, um acordo para a construção de uma ponte sobre o rio Mamoré entre as cidades de Guajará-Mirim no Brasil e Guayaramerín, na Bolívia, promulgado pelo Decreto n. 6.858, de 25 de maio de 2009.
O acordo em questão, ainda na parte dos “considerando”, afirma que:
1- Os custos decorrentes da elaboração dos estudos técnicos e ambientais, dos Projetos Básicos, Executivo e de Engenharia e da construção da ponte sobre o rio Mamoré serão cobertos pelo governo da República Federativa do Brasil...
Diante dos argumentos apresentados, chega-se à conclusão de que vincular “o presente” dado à Bolívia a uma dívida com 106 anos de atraso e ao Protocolo Adicional de 1966, como justificativa para pagamento é, simplesmente, esconder o interesse político entre as duas Nações ou o desconhecimento dos fatos históricos ligados à negociação que, através da Troca de Notas em 1971, nos fez assumir uma dívida inexistente.
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