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Gente de Opinião

Antônio Cândido

MOCAMBO EU TE QUERO BEM




Antônio Cândido da Silva
 

Cheguei em Porto Velho no dia 10 de maio de 1945 e fui morar na rua Riachuelo (hoje Paulo Leal) onde existe atualmente uma igreja evangélica, entre as ruas Mal. Deodoro e Joaquim Nabuco.

Em 25 de maio de 1948, minha mãe faleceu e eu, com apenas seis anos, fui morar com meus avós, a Rua Almirante Barroso - 727, em uma casa antiga cedida pela Prelazia de Porto Velho e construída em frente a principal rua que dá acesso ao bairro do Mocambo, em terreno hoje murado e fazendo parte do Colégio Maria Auxiliadora.

No Mocambo vivi o que restou da minha infância e a adolescência, de onde saí com quase dezoito anos, para morar com meu pai. Pelo que pude observar o meu Mocambo já nasceu sob o signo do preconceito, haja vista o nome que lhe foi dado, o que pode ser constatado no Dicionário Aurélio:

 

mocambo
[Do quimbundo mu’kambu, ‘cumeeira’, ou mu’kamu, ‘esconderijo’.]
Substantivo masculino.
1.Bras. Couto de escravos fugidos, na floresta.
2.Bras. N. N.E. Cerrado de mato, ou moita, onde o gado costuma às vezes esconder-se:
3.Bras. N.E. Habitação miserável.
4.Bras. V. cabana.

 

Ora, como ali nunca foi couto de escravos fugidos e nunca teve fazendas nas proximidades e gado para lá esconder-se, chega-se à conclusão de que o nome dado tinha o objetivo preconceituoso de caracterizar como miseráveis os moradores daquele pedaço da nascente Porto Velho.

 De quando o conheci, embora o Mocambo tenha sido reduto de “Peles-curta,” não lembro de nenhum miserável morando lá. Pelo contrário, os moradores do Mocambo eram orgulhosos e gente honesta e trabalhadora como os de hoje. Até mesmo o Antônio Coxó, que como o próprio apelido diz, era deficiente físico, possuía uma carroça e ganhava a vida como carregador. Criou todos os seus filhos com o ganho do seu trabalho e a sua descendência hoje é grande.

Para se ter idéia, ouvi os jogos da copa do mundo de 1950 em um rádio “Mullard” (objeto de luxo) de propriedade desse carroceiro e, até hoje, lembro o locutor falando a escalação da seleção brasileira: Barbosa, Augusto, Juvenal, Bauer, Danilo, Brigode, Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Eu tinha apenas nove anos...

Entre tantas outras pessoas e coisas, existem aquelas que marcaram a minha infância de maneira indelével:

O Zé Risada que casou com a viúva e mais tarde a trocou pela filha dela, de braços dados, primeiro com a viúva e depois com a filha, vestindo o seu indefectível terno branco, aos domingos, descendo em direção à Avenida Ozório para assistir a “missa das oito” na Catedral.

O Seu Aristides, empregado da Prefeitura, chefe da primeira equipe que hoje seria de zoonose, encarregado de laçar os cães vadios nas ruas de Porto Velho. Morreu tuberculoso e disseram, à época, que foi por causa das pragas rogadas pelos donos dos cachorros mortos, atentamente ouvidas por São Lázaro.

Antônio do Violão, a Tucandeira, do Terreiro de Santa Bárbara, fumando o seu cachimbo; Seu Pedro, do Serviço de Navegação do Madeira e Dona Edna; o Dionízio Xavier (Dió) recém casado com Dona Maria dos Anjos, descendo a ladeira do cemitério em direção a sua drogaria na Rua Barão do Rio Branco; Dona Vivi e as suas filhas Amélia e Alzerina; o Sabá (Sebastião) que trabalhava no SAALFT, transformado depois em CERON; os Garcia, já na Prudente de Morais e a Geny e sua irmã, filhas de uma senhora viúva cujo nome esqueci.

A lembrança, por estranhos caminhos, me leva de volta ao passado ao encontro da família Cataca; do Mão Branca, impecavelmente vestido na manhã dominical; da família Ampueiro; do Cazumbá e seu filho Antônio Piriquitin; do Tacacá de Dona Porfíria, mãe da Ubalda e tantas outras pessoas cujos nomes me fogem da memória.

Consigo ver ao “primeiro apito da Usina” os trabalhadores e estudantes descendo do Mocambo para mais um dia de trabalho. Os meninos em direção ao Colégio Dom Bosco e as meninas, com medo de passarem em frente ao Necrotério (onde sempre havia um defunto) cortando caminho pelo quintal da nossa casa rumo ao Maria Auxiliadora.  

Mocambo! Quantas lembranças das brincadeiras dos meus tempos de moleque... Fecho os olhos e me vejo descendo a ladeira do cemitério em carros com rodas de madeira que hoje são feitos com rolimãs. O futebol no fim da tarde; passarinhar e roubar cocos e goiabas no sítio do Seu Pompílio, na Almirante Barroso, em frente ao hospital; empinar papagaio; assustar as pessoas à noite puxando tranças de cebolas amarradas em barbante, enfim,  vejo-me fazendo todas as “sacanagens” que um bom moleque fazia, mesmo que isso custasse, às vezes, algumas palmatoadas aplicadas com zelo pela minha avó...

Lembro do Areal surgindo, crescendo e invadindo o meu Mocambo e os seus moradores cortando caminho pelas vielas do meu bairro, vaidosos por morarem num bairro planejado, com ruas retas e topografia feita pelo Seu Miranda.

Tanto fizeram e tão grande foi a resistência, que apesar de espremido por todos os lados, o Mocambo só não conseguiu vencer o preconceito claramente explicitado nos jornais.

Enquanto vivi no Mocambo não conheci um só bandido, mau elemento ou ladrão de galinha. Naquele tempo os vizinhos se ajudavam e era comum um emprestar ao outro um “xirca” de café, um pouco de sal ou, quando alguém fazia, mandar levar uma generosa fatia de bolo ao vizinho mais próximo.

Hoje são outros tempos. A cidade cresceu trazendo com o progresso as mazelas e os vícios e o Mocambo, como todos os bairros de Porto Velho, não podia fugir à regra e a droga é uma realidade. No entanto, não podemos generalizar. A quase totalidade dos moradores do Mocambo continua sendo trabalhadora, honesta e merecedora de respeito. O combate e a erradicação do problema, no entanto, cabem as autoridades competentes detentoras dos meios e condições para isso.

Eu gosto do meu Mocambo guerreiro, resistente que depois de apertado por todos os lados em direção ao cemitério, em vez de entregar-se e cair na cova fez um pacto com os mortos e hoje conhece os segredos da eternidade.

Eu prefiro ver o meu Mocambo com os olhos da lembrança e dedicar aos seus moradores o fruto do meu sonho de ser poeta, nascido na vida alegre e feliz dos meus tempos de menino.

 

Mocambo


Das coisas desta terra

eu quero em versos te cantar primeiro

pela maneira como me acolheu,

quando cheguei na minha pouca idade

dos seringais do Amadeu.

 

E hoje te recordo

naqueles tempos que já vão distantes

e que foram felizes.

Na minha infância

povoada de sonhos e matizes.

 

Desfilam na memória velhos conhecidos:

o Zé Rizada, o Ramos,

o velho Pedro da Navegação,

a Tucandeira, o Coxó

e o Antônio, também do violão.

 

Mocambo das velhas serenatas

e das brigas de turmas lá rua.

Mocambo das moças bonitas.

Mocambo da Geny, da Cacilda

e Amélia Amorim.

 

Mocambo do Antenor, do Barito

e Negro Rui que ia ao cemitério

fazer assombração.

Mocambo do Ivo, do Pedro e do Mijão.

 

Naquele tempo o bairro era feliz

havia o futebol no fim da tarde

e entre a meninada a união.

Mocambo que parou no tempo

aparentemente

e onde não há moleques

como antigamente.

 

Era como se o mundo fosse nosso

e nosso era o beco e era a rua

onde de dia reinavam as peladas

e cantigas de roda á luz da lua.

 

Era uma sensação indefinida

roubar cocos no sítio do Pompílio

ou lutar espadas

feitas com tábuas de caixa de banha

e tampas de manteiga.

 

Eu era órfão, pobre e era feliz

porque não era só.

No meu Mocambo tudo era alegria

e o mundo parecia ter mais luz.

No cemitério, um velho conhecido,

se derrubava mangas

com velhos braços de cruz.

 

Hoje tudo mudou

como também mudei

e dos antigos colegas

pouco ou nada sei...

                                      
(Poesia do livro Marcas do Tempo)

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