Quarta-feira, 9 de janeiro de 2008 - 10h02
No último dia de finados passei pelo túmulo de Vespasiano Ramos, que nos idos de 1916, atendendo ao convite do seringalista Aureliano Borges do Carmo veio dar com seus costados em Porto Velho, aonde faleceu alguns meses depois.
Ali, a contrição com que eu rezava uma Ave-Maria em intenção de sua alma, era divida com as lembranças do que foi a vida do poeta nos poucos meses em que viveu nesta cidade, para cá trazido, pelas lembranças de um noivado desfeito, carregando a mala cheia de saudades e desilusões.
Boêmio e seresteiro, como todo bom poeta do seu tempo, Vespasiano encontrou em José Alves de Lira, o Cabo Lira, o parceiro ideal com o mesmo gosto pela poesia que, se não as fazia, sabia declamar emocionado, e pelas serenatas que passaram a fazer juntos nos finais de semana. Tornaram-se tão bons amigos que Vespasiano veio a falecer acometido de tuberculose e malária, na casa e nos braços do amigo, assistido pela dedicação de Dona Doralice esposa do Cabo Lira.
Morreu o poeta mas não morreu a amizade. Cabo Lira, invariavelmente, após encher de sonhos a noite das moças casadoiras da pequena Porto Velho, terminava as suas serenatas com o que restava de uma garrafa de bebida no túmulo do poeta, em uma celebração própria de quem já estava sendo dirigido pelo efeito de outras garrafas esvaziadas na "Via Sacra" boêmia.
O cemitério, amurado apenas na sua parte frontal que dá para a rua Almirante Barroso, tinha as partes laterais e a retaguarda, protegidas por uma cerca de arame farpado, para evitar a entrada no campo santo, de animais que pastavam soltos após passarem o dia suportando o peso de uma carroça carregada de mercadorias, entre o cais do porto e a área comercial.
O administrador-coveiro-vigia do Cemitério era uma criatura alta e esquisita conhecida apenas pelo nome de Seu João. Não possuía parentes. Era apenas mais uma dessas pessoas perdidas no mundo, com as quais o ciclo evolutivo da humanidade é interrompido com a sua morte.
Seu João era a encarnação (se é que existe), das figuras imaginárias de almas do outro mundo. A sua pele algum dia branca, apresentava-se encerada, de um amarelo cadavérico, cobrindo um corpo magro e um rosto anguloso onde os ossos pareciam na eminência de furar a pele. Tinha uma cabeleira que descia até a altura dos ombros, constituída de cabelos lisos, loiros e maltratados, que serviam para destacar o azul dos seus olhos sem brilho, próprios de quem já está a caminho do outro mundo.
Por questão de economia, já que o salário que recebia devia ser uma miséria, dormia no local de trabalho, utilizando como cama a mesa de concreto onde, até a década de 50 era feita a necropsia dos cadáveres ou, nas noites quentes e enluaradas, tinha o hábito de aproveitar a brisa da noite dormindo tranqüilamente sobre os mausoléus.
Outra consideração que merece menção é o fato de Seu João, vivido e curtido na solidão, ser um homem de poucas palavras, por isso, raríssimas pessoas haviam tido a oportunidade de ouvir a sua voz cavernosa, segundo alguns afirmavam, de alma penada vagando pelo mundo.
Um dia, (toda história começa assim), Cabo Lira acertou com o seu parceiro a serenata para aquele sábado, após conferir o calendário do Sagrado Coração de Jesus e constatar que aquela noite seria iluminada pela lua cheia, ideal para fazer pulsar os corações enamorados das donzelas e tirar o sono de pais ranzinzas, que muitas vezes expulsavam os cantadores sacudindo pinicos cheios de substância líquida rica em uréia.
À noite, por volta das 23 horas, começaram a serenata pelo bairro Caiari, passaram pela Baixa da União, foram ao bairro da Favela e, já pelas três horas da madrugada, depois de percorrer o Mocambo, estavam, como sempre, diante do túmulo de Vespasiano Ramos, cantando emocionados: "Eu juro que rasguei o teu retrato, ajoelhado aos pés de outra mulher"...
Pararam de cantar chorando emocionados pela falta do amigo, quando o Cabo Lira propôs um brinde. Buscou a garrafa de conhaque, encheu dois copos e deu um ao parceiro dizendo: este é para ti, este para mim, e este, (derramando a bebida no túmulo), é para o meu inesquecível amigo Vespasiano Ramos, que Deus o tenha em sua glória!
Seu João que dormia sobre um túmulo fora do foco visual dos seresteiros e fora acordado pelos acordes musicais da serenata, ao ouvir aquele brinde, não se conteve e falou:
Boooota praaaa mimmm tambéeeem!
Os seresteiros, quando viram aquele vulto esquelético levantando-se do túmulo, e aquela voz inconfundível de alguém que já se foi, largaram o conhaque e o violão sobre a tumba do poeta e, até hoje, ninguém conseguiu explicar como Cabo Lira e seu amigo passaram pela cerca de arame farpado sem um ferimento sequer.
Antônio Cândido da Silva
Fonte - Antônio Cândido da Silva
Membro da Academia de Letras de Rondônia
Membro da União Brasileira de Escritores UBE RO.
CONTATO: a.candido.silva@hotmail.com
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