Antônio Cândido da Silva
Ao lado do galpão da Serraria Tiradentes, desmontado recentemente para dar lugar às obras de construção do porto do Cai N’água, serraria cuja caldeira deu tanto o que falar, existem dois postes solitários, talvez os últimos exemplares, construídos com trilhos, aqui chegados quando da montagem das primeiras instalações do complexo ferroviário.
Do alto dos seus quase vinte metros, assistiram a demolição e a discussão que veio depois, dizendo um para o outro: ainda bem que ninguém nos viu.
E continuam lá, observando as pessoas que passam indiferentes, pisando na lama que se formou após a demolição do galpão, algumas lançando impropérios ao prefeito e outras resignadas porque entendem que tudo isso é o preço cobrado pelo progresso.
O interessante é que mesmo com a movimentação de milhares de pessoas circulando diariamente pelo local, ninguém percebe aquelas duas estruturas de aço apontandas para o céu, e as que veem, enxergam apenas dois montes de ferro velho que teimam em se conservar de pé.
Realmente, como ferro, os postes valem somente alguns trocados para depois de derretidos serem transformados em outras coisas, agregando-se valores ao material sem importância.
E por que estou perdendo tempo em escrever sobre objetos que ninguém dá importância e, como material, não tem valor financeiro que mereça ser considerado?
Faço isso porque por trás desses postes existe uma história que poucas pessoas conhecem, sendo a minha intenção contribuir para a preservação desses objetos pelo que eles representam e não pelo que são, apenas postes, apenas ferro, apenas aço...
Deixemos de lado a história da Estrada de Ferro, a epopéia da sua construção com seus mortos, invenções e lendas, e falemos apenas de trilhos, digamos que no “tema” Madeira-Mamoré, vamos escolher o título: trilhos.
Então, podemos começar assim:
Os primeiros trilhos chegados a Santo Antônio, datam do ano de 1872, trazidos pelos ingleses da Public Works, quando da primeira tentativa de se construir a ferrovia, sob o comando de George Earl Church, descrito por Manoel Rodrigues Ferreira, em A ferrovia do diabo, pagina 83: O material levado a Santo Antônio era de grande valor, pois bastava para construir os primeiros 36 km da ferrovia.
Em 1878, vamos encontrar o registro da chegada de nova remessa de trilhos com a P. T. Collins, descrita no mesmo livro, página 112, assim:
O pessoal, em número de 227, era constituído de (...) Havia também um carregamento de 500 toneladas de materiais para construção, 200 toneladas de máquinas e ferramentas e mais 350 toneladas de carvão mineral.
Mais à frente, no livro citado, página 114, vamos encontrar a seguinte informação relacionada à Empresa P. T. Collins:
No dia 28 de janeiro de 1878, partiu de Filadélfia o “Metrópolis” com 246 pessoas e mais 500 toneladas de trilhos e maquinaria, e 200 toneladas de provisões, com destino a Santo Antônio.
No dia 29, uma violenta tempestade colheu o vapor, atirando-o contra a costa da Carolina do Norte.
É claro que a May, Jekyll e Randolph, também trouxe trilhos isso, no ano de 1907, quando iniciou, em Santo Antônio, a construção da ferrovia no dia 23 de junho daquele ano.
Se observarmos as fotos “aéreas” feitas por Dana Meryll (as fotos abaixo, por exemplo) chegamos à conclusão de que é verdadeira a história de que ele subia nesse tipo de poste para fazer suas fotos, e a foto da serraria bem que poderia ter sido feita de um dos nossos postos solitários, tudo isso considerando que o avião ainda não existia naquela época.
Agora observemos a foto n.3, destaque ampliado da foto numero 2, para vermos que a foto “aérea” número 1, foi feita do alto das torres que aparecem assinaladas no destaque, o que vem comprovar a afirmação de que Dana Meryll utilizava os postes e no caso as torres, para fazer as suas fotos.
Observemos, ainda, que as antenas mostradas foram instaladas na área onde atualmente se encontra o Mirante, Hospital Militar Embratel etc, único local de onde se poderia focalizar a cidade no ângulo em que a foto foi feita. Para quem duvidar, basta copiar e ampliar a foto original de Dana Meryll.
Com a nacionalização da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 10 de julho de 1931, o “Ramal do Courinos” como ficou conhecido, um ramal de cerca de 10 quilômetros que servia para retirar da mata os dormentes destinados aos reparos da linha férrea, foi desativado e desmontado e os trilhos ali utilizados foram generosamente distribuídos para construções como Colégio Maria Auxiliadora, Colégio Dom Bosco, Prédio da Câmara Municipal (hoje caindo aos pedaços), Hospital São José e outras construções,
Vitor Hugo, em Desbravadores, volume II, página 98, confirma a nossa informação com dados colhidos em carta do Padre João Nicoletti endereçado ao Capitão Aluízio Ferreira, em 9 de dezembro de 1933:
No dia 4 de janeiro de 1933, foi lançada a primeira pedra do colégio para as meninas; também nesta obra foi relevante a cooperação incontestável do Cap. Aluízio Ferreira: todas as vigas de ferro e centenas de quilos de trilhos foram cedidos graciosamente pela Estrada de Ferro.
Após a nacionalização, o serviço de distribuição de energia elétrica que era feito pela Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, utilizou fartamente os trilhos da ferrovia como postes de luz, em toda a cidade.
Depois veio a desativação e, nesse período, toda a área em frente a 17ª Brigada de Infantaria de Selva foi cercada com trilhos da ferrovia, cedidos gentilmente pelo 5º BEC.
Na época da construção do prédio onde funciona a loja Marisa, a imprensa divulgou que a construtora utilizou trilhos ferroviários, na base da construção, feita sobre o leito do antigo igarapé das lavadeiras hoje diminuído à condição de esgoto. Consta que foi apresentada uma Nota Fiscal do estado de Minas Gerais para comprovar a origem dos trilhos.
Se percorrermos as ruas Carlos Gomes e Pinheiro Machado, por exemplo, vamos encontrar em várias esquinas, os trilhos da ferrovia protegendo os estabelecimentos comerciais contra possíveis choques de carros.
Poderíamos, poeticamente, falar da alma dos trilhos, do orgulho de ser trilho nos tempos em que a esperança embalava a construção da ferrovia, do trabalho diário de suportar o peso do progresso carregado nos trens, nos carros de passageiros, de bois e de mercadorias. Falar da depressão causada pelo abandono com o mato cobrindo a vergonha da imprestabilidade a que foram colocados. Do esquecimento da sua história de serviços prestados...
Poderíamos comparar os nossos trilhos à história de um amor impossível, cujos protagonistas seguem na vida como duas paralelas sem nunca se encontrarem...
Ou, ao contrário, de uma comparação que terminasse assim:
E estas linhas que tu vês unidas
seguindo sempre lado a lado assim.
Representam Maria nossas vidas
seguindo juntas para o mesmo fim...
Alguém disse que “ninguém ama o que não conhece” por isso, o objetivo deste texto, é deixar claro que aqueles postes devem ser preservados para que as gerações futuras, ao vê-los, conheçam também a história dos trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e não aconteça o que se verifica hoje, quando as pessoas por não conhecerem não dão o devido valor as nossas coisas.
Enfim, muito mais se poderia falar sobre os trilhos da nossa ferrovia, pois o que foi dito aqui, aliás muito pouco, começou com as imagens tristes de dois postes solitários na manhã cinzenta de 5 de dezembro de 2009...