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Antônio Cândido

THE BLACK BOY


Naquele dia Edgar tivera um dia de cão na empresa onde trabalhava. Chegou nervoso e atrasado para o almoço (costume ainda conservado em cidades pequenas), entrou com o carro na garagem, fechou o portão e ao entrar na área de serviço deu de cara com uma cena que o deixou mais irritado ainda.

Cercado pelos seus quatro filhos e com o aval de sua mulher, um gatinho preto, pouco tempo de nascido, faminto, bebia leite apressadamente no seu cinzeiro de estimação, construído em cristal puro que lhe tinha sido presenteado pela sua mulher no dia dos namorados.

Edgar que não era amante de gatos embora adorasse o lado feminino da raça felina, olhou para o miau que saiu cambaleando com a barriga cheia balançando, indo deitar-se satisfeito debaixo da mesa, e falou para si mesmo:

— Hoje é meu dia de azar! Depois de tantos problemas, chego em casa e dou de cara com um gato preto.

— Pai! Deixa ele ficar — falou a caçula, jogada no fogo pelos mais velhos — a gente cuida dele...

— Edgar olhou para o gato que dormia satisfeito sonhando com gatos anjinhos que voavam ao seu redor, e teve a impressão de que o felino lhe sorriu com o rosto agradecido de um bebê que foi jogado no lixo e, finalmente, encontrou um lar.

       Nesse instante a sua mulher intercedeu em favor das crianças e a filha mais velha, na inocência dos seus nove anos, criou coragem e arriscou:

Deixa o Black Boy ficar pai. Deixa!

Edgar olhou mais uma vez para o infeliz, e declarou:

Está bem! Mas arranjem outra vasilha e lavem o meu cinzeiro.

Por causa do adiantado da hora Edgar pôs-se a comer sozinho enquanto Valéria, sua mulher, lavava a louça na pia da cozinha, e começou a pensar com seus botões (embora estivesse sem camisa): Um gato preto (dizem que dá azar), que nem mãe tem, "sem eira nem beira", e ainda por cima com nome em inglês, Black Boy como se fosse gato de americano rico, logo na minha casa que não gosto de gatos e muito menos de americanos.

Edgar, entre uma colherada e outra, olhou desconfiado para debaixo da mesa e confirmou a presença do tal Black Boy, com a barriga desproporcionalmente gorda pelo leite ingerido que a pele chegava a brilhar, e pensou: o couro desse gato deve ser bom para ser colocado em um tamborim, pelo menos quando ele crescer. E sorriu maldosamente... pelo menos vai servir para pagar o leite que esse porcaria vai tomar. Logo agora que a inflação está em alta, esse infeliz veio aparecer para aumentar a despesa de casa e, pra completar, o patrão já falou que não vai poder dar o aumento prometido.

Mas, uma coisa Edgar tinha que admitir: o miserável podia dar azar para os outros, porque pra ele tudo estava dando certo, haja vista que ele conseguiu o apoio da  dona da casa e das três filhas. E quem era ele pra comprar brigas com quatro mulheres de uma só vez?

É, pensou sorrindo, talvez um dia em venha fazer um churrasco desse bastardo.

Cercado de cuidados, Black Boy teve uma infância nababesca e agora, saindo da adolescência, preparava-se para a maturidade, sem, no entanto abandonar a vida boa, principalmente os hábitos ruins, adquiridos por força das mordomias com que sempre fora presenteado pelas crianças.

Com o passar do tempo, até mesmo Edgar  rendera-se ao puxa-saquismo do gato, mas, detestava quando, na hora das refeições, ele vinha esfregar-se nas suas pernas à espera de uma recompensa, ou quando o encontrava dormindo na sua cadeira do papai, presente das crianças no último Natal, comprada a prazo, e que somente há poucos meses ele acabara de pagar as prestações.

Black Boy era o "sem-terra" do asfalto que invadiu o latifúndio de Edgar e ainda rezava para que não houvesse desapropriação da área invadida, pois, só assim, ele viveria por conta do "movimento" sem ter que arar e fazer a terra produzir. Era socialista convicto mas, nasceu apenas para liderar e dividir a colheita que "os outros" produzissem com o próprio trabalho e o suor das suas línguas.

Se lhe dessem uma oportunidade seria, com certeza, um bom "papa defunto" ou um ótimo político corrupto pelo fato de sempre andar vestido a caráter (todo de preto) e, no segundo caso, também por pertencer à família dos "gatunos", isso, desde que não tivesse que carregar as malas pretas.

Quando entrou na fase reprodutiva, Black Boy mudou seus hábitos radicalmente. Aparecia em casa por volta das 18 horas, mancando, lanhado e como uma aparência que causava dó nas meninas de Edgard que não sabiam, ainda, que aquele era o resultado da luta felina pela perpetuação da espécie.

Davam-lhe comida que ele saboreava com cara de coitado, depois se sentava, lambia as patas com as quais limpava os bigodes e, de repente, saía correndo, pulava para o alto do muro por onde desfilava faceiro, para desespero dos cães da vizinhança que se punham a latir desesperados, e entregava-se a esbórnia até o dia seguinte quando voltava com cara de "mamãe me acuda".

Mas, o pior defeito de Black Boy era a mania que ele adquiriu, já depois de grande, de fazer aquilo que normalmente os gatos enterram, no boxe da suíte do casal e, como tudo que acontece de errado em casa a culpa é do marido, Edgar foi julgado, sem direito de defesa, culpado pelo o quê Black Boy deixava no banheiro. Logo ele que nem gostava de gatos, preferindo o lado feminino...etc e tal.

Um dia, para ser mais preciso, uma tarde, Edgar entra no box para tomar banho e plaft! Foi com o pé exatamente em cima daquilo, que como foi dito, o gato enterra. Para não brigar com a mulher, já que aquela era a "noite sim" da semana, limpou ele mesmo o banheiro, tomou banho e voltou para o trabalho.

Aquele foi o último dia de boa vida de Black Boy. No cair da noite, Edgar ensacou o "pé de pano" e foi soltá-lo no mercado Municipal, ao lado de uma matilha de cães que perseguiam a "perseguida" de uma cadela. Os "au-aus" correram atrás de Black Boy e juntos perderam-se no lusco-fusco da rua do mercado.

Antônio Cândido da Silva

Fonte - Antônio Cândido da Silva
Membro da Academia de Letras de Rondônia
Membro da União Brasileira de Escritores – UBE – RO. 
CONTATO:
a.candido.silva@hotmail.com

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