Quarta-feira, 6 de novembro de 2019 - 12h54
Pertenço à geração que teve o
privilégio de fazer 20 anos nos anos 60: Revolução Cubana, Che, Beatles, Rei
da Vela, manifestações estudantis, Alegria, Alegria, Gláuber Rocha,
McLuhan, revista Realidade, Marcuse, Maio de 68, João XXIII, naves
espaciais etc.
Era a geração dos sonhos. "Sonhar é acordar-se para dentro", lembra
Mário Quintana. Estávamos permanentemente despertos. Nossas quimeras não eram
acalentadas por drogas, mas por utopias.
Segundo a teoria psicanalítica, todo sonho é projeção de um desejo. Nossa
geração desejava ardentemente mudar o mundo, instaurar a justiça social,
derrubar a velha ordem.
O sonho quebrou-se ao tocar a realidade. A ditadura militar (1964-1985) encarou
como subversivos nossos protestos e conteve, com cassetetes e tiros, nossas
passeatas. Nossos congressos estudantis terminaram em prisões e, escorraçados
para a clandestinidade, não nos restou alternativa senão o exílio ou a resistência.
Em nossas utopias os carrascos abriram feridas, e dependuraram nossos ideais no
pau-de-arara. O que era canto virou dor; o que era encanto, cadáver. A
roda-viva se encheu de medo e o nosso cálice de “vinho tinto de sangue”.
Nossos paradigmas ruíram sob os escombros do Muro de Berlim. Não era o
socialismo das massas nem os proletários no poder. Era o socialismo do Estado,
pai e patrão, atolado no paradoxo de agigantar-se em nome do fim iminente da
luta de classes. O economicismo, a falta de uma teoria do Estado e de uma
sociedade civil forte e mobilizada, levaram o rio das fantasias coletivas a
transbordar sobre as pontes férreas dos engenheiros do sistema. O socialismo
real saciava a fome de pão, não o apetite de beleza. Partilhava bens materiais
e privatizava o sonho. Todo sonho estranho à ortodoxia era visto como
diversionista, ameaçador.
Astuto, o capitalismo socializa a beleza para camuflar a cruel privatização do
pão. Aqui, todos são livres para falar; não para comer. Livres para transitar;
não para comprar passagens. Livres para votar; não para interferir no poder. O
Muro de Berlim ruiu e, ainda hoje, a poeira levantada embaça os nossos olhos.
Solteira de paradigmas, a esquerda é uma donzela perplexa que, terminada a festa,
não consegue encontrar o caminho de casa. Há muitos pretendentes dispostos a
acompanhá-la, mas ela teme ser conduzida ao leito de quem quer estuprá-la.
Ansiosa, envereda-se pelo labirinto do eleitorarismo e se perde no jogo de
espelhos que exarcebam o narcisismo de quem se maquia no reflexo das urnas.
Deixa-se arrastar pela rotatividade eleitoral, onde ideais e programas são
atropelados pela caça a votos e cargos. E, quanto mais se aproxima das
estruturas de poder, mais se distancia dos movimentos populares.
É bem verdade que, ao assumir a administração pública, investe em programas
sociais, aprimora o acesso à saúde, à educação, moradia e cesta básica.
Contudo, desprovida de andaimes, não faz dessa massa um novo edifício teórico,
alternativo à globocolonização neoliberal que execra a cidadania e exalta o
consumismo, repudia os direitos sociais e idolatra o mercado.
A maré sobe – Equador, Chile, Argentina - mas, na praia, pescadores acostumados
a selecionar os peixes têm os olhos cegos pelo reflexo do Sol. A história
cessou?
Fora da esquerda, não há saída para a miséria que assola o planeta (1,3 bilhão
de pessoas). A lógica do capitalismo é incompatível com a justiça social. O
sistema requer acumulação; a justiça, partilha. E não há futuro para a esquerda
sem ética, utopia, vínculos com os pobres e coragem de dar a vida pelo sonho.
Hoje, o socialismo já não é apenas questão ideológica ou política. É também
aritmética: sem partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano, os
quase 8 bilhões de passageiros dessa nave espacial chamada Terra estarão
condenados, em sua maioria, à morte precoce, sem o direito de desfrutar o que a
vida requer de mais essencial para ser feliz: pão, paz e prazer.
Resta, agora, a esquerda acordar para o sonho.
Frei Betto é escritor, autor de
“Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.
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