Segunda-feira, 27 de maio de 2019 - 08h43
O fundamentalismo sempre existiu nas tradições religiosas. Consiste em interpretar literalmente o texto sagrado, sem contextualizá-lo, e extrair deduções alegóricas e subjetivas como única verdade universalmente válida. Para o fundamentalista, a letra da lei vale mais que o Espírito de Deus. E a doutrina religiosa está acima do amor.
Escolas do sul dos EUA, e também algumas no Brasil, rejeitam os avanços científicos resultantes das pesquisas de Darwin e ensinam que o homem e a mulher foram criados diretamente por Deus. Tal visão fundamentalista nem sequer reconhece que Adão, em hebraico, significa “terra”, e Eva, “vida”. Como os autores do Primeiro Testamento não raciocinavam com categorias abstratas, à semelhança da gente simples do povo, o conceito ganhou plasticidade no “causo” de Adão e Eva.
Todo fundamentalista é um “altruísta”. Está tão convencido de que só ele enxerga a verdade que trata de forçar os demais a aceitar o seu ponto de vista... “para o bem deles”!
Há muitos fundamentalismos em voga, desde o religioso, que confessionaliza a política, ao líder político que se julga revestido de missão divina. Eles geram fanáticos e intolerantes.
Uma das melhores conquistas da modernidade é a separação entre a Igreja e o Estado. Nada de papas coroando reis, como na Idade Média, ou presidentes consagrando a nação ao Imaculado Coração de Maria, como fez Bolsonaro no Planato dia 21 de maio.
Certa vez perguntei a Fidel por que em Cuba o Estado e o Partido eram confessionais. Ele estranhou: “Como confessionais?” “Sim, expliquei, pois são oficialmente ateus. E negar a existência de Deus é tão confessional como afirmá-la.” Mais tarde, o Estado e o Partido Comunista cubanos tornaram-se laicos, assim como todos os estados e partidos modernos.
Reger a vida política a partir de preceitos religiosos é um desrespeito a quem professa outra religião ou nenhuma. Isso não significa que um cristão deva abrir mão de suas convicções e dos valores evangélicos. Mas ele não deve esperar que todos reconheçam a natureza religiosa de sua ética. E nem queira impor a sua fé como paradigma político.
Há que cuidar também para evitar o fundamentalismo laicista, de quem julga que religião é uma questão privada, sem dimensão social e política. Afinal, todos os cristãos são discípulos de um prisioneiro político. E a prática da fé implica em defesa intransigente da vida, especialmente dos vulneráveis e excluídos.
O fundamentalismo laicista, que sempre relegou a religião à esfera da superstição, é danoso por estimular o preconceito e não reconhecer que milhões de pessoas têm em sua fé o paradigma de suas convicções e práticas. Corre-se o risco de repetir o erro dos antigos partidos comunistas, que exigiam dos novos militantes profissão de fé no ateísmo.
Reforçam o fundamentalismo cristão todos os que são indiferentes ao diálogo inter-religioso e consideram a sua Igreja como a única verdadeira intérprete dos mandamentos e da vontade divinos. Por isso, é importante estabelecer os critérios éticos que propiciam a base sobre a qual as diferentes Igrejas e religiões devem dialogar e somar esforços. São eles: a ética da libertação em um mundo dominando por múltiplas opressões; a ética da justiça nessa realidade estruturalmente injusta; a ética da gratuidade nessa cultura mercantilista onde imperam o interesse e o negócio; a ética da compaixão num mundo marcado pela dor de tantas vítimas; a ética da acolhida, já que há tantas exclusões à nossa volta; a ética da solidariedade nessa sociedade fortemente competitiva; a ética da vida frente a tantos sinais de morte que ameaçam a natureza e os pobres.
O fundamentalismo é irmão gêmeo do moralismo. E o moralista é capaz de ver o mosquito no olho alheio, como observou Jesus, sem atinar para a trava no próprio olho. No caso de certos políticos, quem sabe a solução para a paz seja considerar a guerra um atentado ao pudor...
Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do ouro” (Rocco), entre outros livros.
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