Sexta-feira, 25 de abril de 2014 - 00h01
Domingo, 27 de abril, o papa Francisco proclamará como santos, dignos de ocupar lugar nos altares, os papas João XXIII e João Paulo II.
Quem conhece os bastidores da Igreja Católica sabe que se trata de uma no cravo e outra na ferradura. João XXIII, à revelia da Cúria Romana, convocou o Concílio Vaticano II (1962-1965). Pôs o pé no acelerador da renovação. João Paulo II enfiou o pé no freio. Tinham concepções diferentes quanto ao papel da Igreja. As atas do Concílio comprovam que o então bispo Wojtyla, futuro João Paulo II, votou com os conservadores, derrotados pelas decisões conciliares.
Foi na Idade Média, a partir do século XI, que se iniciou o costume de canonizar cristãos falecidos sob a aura de santidade. Criou-se toda uma burocracia vaticana em função disso. Até lobbies em Roma. Basta pesquisar o processo que canonizou Escrivá, o polêmico fundador da Opus Dei.
Processos de canonização são dispendiosos. Obedecem a uma série de critérios, como a comprovação de que o candidato operou, lá da glória celestial, ao menos um milagre. Em geral curas que escapam à explicação da ciência.
Nos últimos tempos essa exigência tem sido relegada. Não consta que João XXIII tenha feito, até agora, algum milagre. Se o fez, foi quando vivo: o Vaticano II. João Paulo II teria curado uma religiosa que, na verdade, nutria devoção por outro santo, segundo confessou uma colega dela... E o padre Anchieta, canonizado dia 3 de abril, também foi dispensado do milagre comprobatório.
Os santos foram, de fato, pessoas acima de todo mal? Ora, como diz o papa Francisco, somos todos pecadores, e precisamos de muita oração. Como canta Chico Buarque, “Procurando bem / Todo mundo tem pereba / Marca de bexiga ou vacina / E tem piriri, tem lombriga, tem ameba / Só a bailarina que não tem” (Ciranda da Bailarina). Entretanto, há fiéis, como Francisco de Assis e tantos anônimos, que se destacaram por uma existência coerente com o que Jesus pregou e testemunhou.
A canonização de Anchieta é oportuna? Há quem duvide, pois ele favoreceu o colonialismo lusitano no Brasil, ao contrário de meu confrade, Bartolomeu de las Casas que, na América hispânica, se opôs à empresa colonialista espanhola. Em carta ao governador-geral Mem de Sá, definiu os indígenas como "lobos vorazes, furiosos cães e cruéis leões que nutriam o ávido ventre com carnes humanas."
À exceção de Judas, todos os apóstolos de Jesus são considerados santos. Nem por isso os evangelhos encobrem seus defeitos: Pedro negou Jesus três vezes; Tomé duvidou; Tiago e João não se opuseram que a mãe, Salomé, pressionasse Jesus para privilegiá-los no Reino...
É a devoção popular que faz os santos, ainda que Roma não os reconheça. É o caso, no Brasil, do Padre Cícero; do índio Sepé Tiaraju, que dá nome ao município gaúcho de São Sepé; Nhá Chica (já beatificada); e a menina Odetinha.
Na Igreja primitiva só os mártires, aqueles que derramaram seu sangue em nome da fé cristã, eram tidos como santos, como é o caso, no Brasil, de frei Tito de Alencar Lima, morto há 40 anos em decorrência das torturas sofridas sob a ditadura. Sua tumba é das mais visitadas no cemitério de Fortaleza.
O papa Paulo VI chegou a cassar um dos santos mais populares da Igreja: Jorge. A reação da coroa britânica e da Geórgia obrigou-o a voltar atrás.
“Até o papa tem pecados”, disse Francisco na audiência de 29/05/2013. Santo não é, portanto, quem é perfeito, e sim aquele que, em meio às contradições, erros e defeitos, faz de sua capacidade de amar um serviço libertador a quem sofre ou vive excluído e oprimido. Isso vale também para quem tem uma fé distinta da professada pelos cristãos ou é ateu, conforme diz Jesus no Evangelho de Mateus (25, 36-41).
Há muito mais santos anônimos neste mundão de Deus do que supõe a nossa vã teologia.
Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros.
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