Domingo, 22 de julho de 2018 - 09h52
O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, promoveu reunião secreta com mais de 200 pastores evangélicos, a 4 de julho, para instruí-los sobre o uso da máquina estatal, a fim de obterem vantagens a templos e fiéis, como isenção de impostos e prioridade em exames de saúde. O abuso resultou-lhe em pedido de impeachment por parte do legislativo carioca.
A relação Igreja e Estado foi sempre conturbada. O Cristianismo nasceu da ruptura de Jesus com dois estados: o Sinédrio judaico, pelo qual foi condenado, e o poder romano, pelo qual foi executado na cruz.
Durante três séculos os cristãos, perseguidos pelo Império Romano, foram obrigados a manifestar sua fé nas catacumbas. Em 313, o imperador Constantino deu um golpe de mestre: devido à popularidade dos cristãos, aliou-se a eles.
A meu ver, a Igreja não converteu Constantino à fé cristã. Foi o imperador romano que converteu a Igreja às mordomias imperiais. É o que retratam as cartas de São Jerônimo. Os bispos passaram a merecer a honra de príncipes, e o papa se tornou monarca absoluto, a ponto de, em 800, o papa Leão III coroar o imperador Carlos Magno, fundador do Sacro Império Romano-Germânico, que dominou a Europa pelos sete séculos posteriores.
Ao longo da história, Estado e Igreja sempre tentaram cooptar um ao outro, como o comprova o período colonial brasileiro até 1872, quando o imperador tinha a prerrogativa de nomear bispos.
Na União Soviética, após tentativa fracassada de erradicar a religião, Stálin se empenhou em cooptar a Igreja Ortodoxa Russa, sem sucesso.
Nos países capitalistas, fez-se um acordo de cavalheiros. O Estado concede privilégios à Igreja, como isenção de impostos e direito de manter escolas e universidades que mercantilizam a educação. A Igreja, por sua vez, adota obsequioso silêncio diante das mazelas e dos abusos do Estado.
Atuei dez anos na retomada do diálogo entre governo e Igreja Católica em Cuba. Frente ao distanciamento crítico dos bispos em relação ao socialismo, certa vez um deles indagou se meu propósito era ver a Igreja apoiar a Revolução.
Respondi que o papel da Igreja, segundo o Evangelho, não é dar apoio ou se opor ao Estado. É servir ao povo, sobretudo os mais pobres e excluídos, como fez e propôs Jesus. Caso o Estado oprima o povo, haverá inevitável conflito com a Igreja, como ocorreu no Brasil após a ditadura militar promulgar o AI-5. Caso o Estado sirva e promova o povo, haverá harmonia entre as duas instituições.
O direito do pobre é o critério evangélico de avaliação do Estado. Nessa sociedade secularizada e plural, a Igreja não tem o direito de pretender impor seus preceitos por via da lei civil, nem querer reduzir os espaços de outras denominações religiosas.
Uma Igreja que coloca seus interesses corporativos e patrimoniais acima das necessidades e dos direitos do conjunto da população não entendeu a proposta do Evangelho. Jesus foi enfático: “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Leia-se: alimentação, saúde, educação etc. para todos. Ele não disse: “Vim para privilegiar vida a meus discípulos, e os demais que se virem.”
O aparelhamento do Estado por religiões é um retrocesso histórico que reacende fogueiras inquisitoriais.
Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
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