Quarta-feira, 23 de setembro de 2020 - 06h05
Bagé, 23.09.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte IX
Viagem da “Real
Escolta” – VI
Dia
18.10.1749. Neste dia, se principiou viagem costeando a referida Ilha pelo
braço maior do Rio entre ela e a margem direita, e não se venceu mais neste dia
de caminho do que duas enseadas, em que se andara três léguas por causa da
grande correnteza. O rumo principal foi Sudoeste. Em uma Praia que saía da
ponta da Ilha ([1]) em que ela finalizou,
portaram as canoas, e na mesma Praia se conservaram no dia 19.
Como
já por este Distrito eram grandes as correntezas, e mui frequentes os baixios,
que tudo dificultava a navegação de canoas grandes, se gastou todo o dia
19.10.1749 em explorar as matas da mesma Ilha e da terra da parte Oriental, na
diligência de se achar madeiros capazes de fabricar embarcações ligeiras para
nelas se prosseguir viagem, tanto para se vencerem os obstáculos referidos,
como para o trânsito das Cachoeiras, para cujo trabalhoso passo se ia
avizinhando a derrota.
Não
se acharam na dita Ilha troncos com capacidade da obra que se projetava, e
somente na margem Oriental de terra firme se acharam os precisos e próprios
para o intento, porém com o desconto de ser preciso formar o Arraial para a
fatura das canoas no mesmo continente, em que de necessidade havia maior risco
dos ataques do gentio, do que poderia suceder na Ilha, aonde não costumam
invadir os viajantes, por não terem retiro fácil depois de cometida a
hostilidade, o que não lhes sucede em terra firme, aonde mais a seu salvo
acometem favorecidos do terreno e dos bosques, em que se embrenham, o que
depois se verificou por experiência.
Não
houve outro arbítrio se não fazer alojamento na terra da margem Oriental do
Rio, cuja planície por então estava desalagada, e para efeito de se entrar à
operação das novas canoas passaram as grandes no dia vinte ao amanhecer ao
sítio que na parte referida se achou mais próprio para formar alojamento, para
o qual se reservou parte suficiente dos índios, e a outra se destinou ao corte
dos troncos que eram precisos, para deles se fabricarem as novas embarcações, e
com felicidade se acharam os tais madeiros na vizinhança do alojamento, e de
mais desta comodidade se encontrou também a abundância conveniente de víveres
para o sustento, assim de caça como de peixe; e só de um Lago ([2])
que se descobriu perto do Arraial, houve uma tal fertilidade de tartarugas que,
além de ministrarem a maior parte do sustento a toda a escolta, ainda dele se
tiraram, na despedida do sítio, as que bastaram para fornecimento de muitos
dias de viagem.
Construído
no dia referido e 21.10.1749 o Arraial, cingido de uma trincheira de
estacarias, e faxina para reparo suficiente de qualquer invasão dos bárbaros,
se guarnecia de noite aquela circunferência com sentinelas, que eram três, para
fazerem sinal de qualquer movimento que se oferecesse, observando-se também o
estilo militar de rondarem os Oficiais da escolta as ditas sentinelas para
evitar algum descuido.
Doze
dias ([3])
se passaram de alojamento sem neles haver sinal de gentio, até que, na
madrugada de 03.11.1749, estando de fora da trincheira uma porção de índios
abrindo o casco da canoa a fogo [serviço que só àquela hora é proveitoso, em
razão de não haver vento, que é mui prejudicial à obra].
De
repente se sentiram assaltados de gentio Mura que, favorecidos do escuro e
espessura do mato, dispararam quantidade de flechas sobre os ditos índios, que
se achavam com suas armas, e escoltados pelo Sargento-mor, Comandante, e
Ajudante da Tropa. Nesta avançada, não houve ofensa na nossa parte, antes um
dos nossos índios teve o acordo de poder empregar uma flecha em um dos
inimigos, que avistou em parte que a luz do fogo lho fez perceber. Tocou-se a
rebate, e posto todo o Arraial em armas [ficando guarda conveniente às canoas
que estiavam no Porto] sucedeu que, ao sair um índio do seu alojamento acudindo
ao rebate, o apanhou uma flecha por entre o osso da fúrcula ([4])
e o pescoço da parte esquerda, que logo o deixou sem vida. Botou-se um cordão
de gente por fora à trincheira da parte acometida, e outro pelo mato com
desígnio de se apanharem ao romper do dia em cerco onde fosse castigado o seu
atrevimento; não teve efeito o projeto, porque os Muras, carregando o seu
ferido que dava grandes brados, se acharam longe daquele sítio quando aclarou o
dia.
Não
houve lugar, na ocasião do ataque, de ter efeito o uso das espingardas, porque
se não podia ver onde fazer pontaria; caíam as flechas, porém não se distinguia
o vulto que as impelia; cessou ainda assim a flecharia, depois que, para aquela
parte donde saíam, se disparou uma descarga de quatro armas.
Para
se continuar o serviço da fábrica das canoas, foi preciso dobrar as sentinelas
na trincheira e, quando era necessário ir ao mato buscar cipó, folhas, estopa,
e outros materiais, sempre os índios iam escoltados, e só em uma ocasião
apareceram os Muras em um corte de pau, porém, como foram vistos, e atenderam a
disposição de armas, usaram da sua covardia retirando-se sem obrarem ação
alguma.
Somente
de noite rodeavam ao largo o Arraial, e não se resolveram mais chegar perto da
trincheira, sem embargo que das portas para dentro, é que se abriram as mais
canoas a fogo. Como aos índios trabalhadores era já mui custoso de dia lavraram
madeira e de noite fazer sentinela, pareceu conveniente, depois de estarem
cinco cascos de canoas abertos, que eram os precisos, mudar o Arraial para a
parte mais acomodada, em que os desvelos noturnos nos fossem de menos trabalho.
Tomada
esta resolução, se abandonou aquele lugar no dia 19.11.1749 no qual, com quatro
horas de caminho Rio acima, se elegeu uma Ilha pequena com sua Praia onde, no
dia 20.11.1749, se armaram somente os estaleiros em que se acabassem as cinco
canoas, o que se efetuou sem a menor perturbação do gentio até o dia
01.12.1749, em que carregando-se as novas embarcações, se expediram no dia
seguinte ([5]),
de manhã as canoas grandes para baixo, preparadas de mantimentos, armas e
lenha, para evitar o portar em terra a cortá-la, com ordem os soldados que as
governavam de portarem na Aldeia dos Abacaxis, e aí esperarem a volta da
escolta.
Esta
([6]),
no dia 03.12.1749, pelas 08h00, principiou sua derrota Rio acima, no rumo de
Oeste, e logo a Sudoeste rumo geral. Costeou-se à parte esquerda, que quase
toda a ribanceira é de terra caída, e à parte direita deságua um Lago mui
abundante de Peixe, o qual, ou seja guisado com temperos ou assado, não tem
sabor a coisa alguma, razão por que os índios, no idioma da sua língua geral,
lhe chamam Lago de Jerupari-pirá, que no Português quer dizer: Lago que tem
peixe do Diabo. Não se sabe atribuir ao certo de que procede aquela insipidez
tão extraordinária. Sendo já noite portaram as canoas em uma Ilha chamada de
Santo Antônio ([7]): e em oito horas de
caminho se andara três léguas nos rumos já referidos.
Em
04.12.1749, se prosseguiu viagem costeando à esquerda uma grande enseada de
terra alagada, sendo a outra terra da margem direita de barreiras vermelhas.
No
fim da dita enseada, deságua um Lago chamado Pirá Jacaré ([8]),
defronte de cuja boca principia uma Ilha encostada à parte direita, que se
dilatava até a meia enseada que se seguia.
Defronte
da ponta desta enseada, havia uma restinga de pedras, em que havia grandíssima
correnteza, passada a qual, sendo já de noite, portaram as canoas na ribanceira
da parte esquerda com 13 horas de caminho, em que se andara 4 léguas nos rumos
do Sul a que se principiou, e logo a maior parte do caminho a Sudoeste, e se
portou no de Oeste ([9]).
A 05.12.1749, se continuou viagem costeando à esquerda
no rumo de Sudoeste e Sul, terra alagadiça; defronte desaguavam dois Lagos de
terra que não alagava. Passada a enseada, se seguiam três Ilhas lançadas a rumo
de Sueste ao qual se navegou pelos que fazia o Rio e, passando a enseada, se
costeou à direita, e entrou já de noite por um canal entre a terra e uma Ilha,
e se portou na ribanceira às 8 horas da noite, e em 15 horas de caminho, se
andara cinco léguas.
No
dia 06.12.1749, que sucedeu ser mui tempestuoso de chuva e vento, se continuou
a navegar o canal referido nos rumos de Sudoeste e Sul, seguindo-se mais duas
Ilhas à antecedente, e saindo a enseada, costeando à direita, foi visto um
gentio na ribanceira encarando o arco para disparar flecha sobre a gente de uma
canoa; porém andando mais destra a espingarda de um soldado em ser disparada
por ele, não se sabe ao certo se foi ou não chumbado, porém é sem dúvida que
não foi mais visto.
Seguiu-se
logo na mesma ribanceira uma restinga de pedras, em que, com algum trabalho,
foi preciso sirgar ([10])
as canoas à corda, e acabada esta operação por ser quase noite, portaram as
canoas em uma Praia de Ilha que havia no meio do Rio. Neste dia, em 6 horas de
caminho, se andara nos ditos remos 2 léguas.
Dia
07.12.1749. Prosseguiu-se viagem costeando à esquerda no rumo de Susudoeste e
Sul, e da margem direita deságua defronte da ponta da enseada um Lago, e logo
mais adiante um Ribeiro de pouca entidade, e a este se seguia outro de pouca
entidade também e, antes de chegar umas barreiras vermelhas, desaguavam dois Lagos
também insignificantes. Passadas as ditas barreiras, fazia barra um Riacho
chamado Marani ([11]), que teria de Boca [ao
parecer] 50 braças ([12]),
e a sua direção mostrava ser a Oeste.
Continuando
a derrota da parte esquerda no rumo de Lessueste, se achou a terra da
ribanceira mais alta ([13]),
e à vista da água várias vigias [à maneira de guaritas] cobertas de palha, em
que o gentio costuma registrar o que passa pelo Rio, e quando descobrem as suas
praias, para eles saírem a pescar; no fim desta margem mais alta deságua um
Lago chamado das Piranhas.
Deste
lugar, já sobre a tarde, se avistaram umas Ilhas ([14]),
por entre as quais se dividia o Rio em vários canais com uma tal disposição, a
verdura do arvoredo representada na tranquilidade das águas oferecia aos olhos
o mais agradável objeto que até esse passo se havia logrado.
Já
de noite, portaram as canoas na Praia de uma das Ilhas ([15]);
com doze horas de caminho, em que se andara cinco léguas. (G. FONSECA, 1826)
(Continua...)
Bibliografia
G. FONSECA, J.. Notícias para a História e
Geografia das Nações Ultramarinas – Portugal – Lisboa – Academia Real das
Ciências – Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações
Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses, ou lhe são Vizinhas, Volume
4, n° 1, 1826.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Ilha: 06°36’33,7” S / 62°19’38,4” O.
[2] Lago: Tapuru – 06°34’55,7” S / 62°17’49,7” O.
[3] Doze dias: 22.10.1749 a 03.11.1749.
[4] Fúrcula: clavícula.
[5] Dia seguinte: 02.12.1749.
[6] Esta: esta escolta.
[7] Santo Antônio: 06°46’31,4” S / 62°25’27,7” O.
[8] Pirá Jacaré: Carapanatuba.
[9] No de Oeste: 07°00’35,2” S / 62°48’03,1” O.
[10] Sirgar: puxar.
[11] Marani: Lago Puruzinho – 07°23’14,9” S / 63°00’01,8” O.
[12] 50 braças: 110 m.
[13] Terra da ribanceira mais alta: Humaitá.
[14] Ilhas: Salomão e Fausto.
[15] Ilhas: Ilha Fausto – 07°39’25,6” S / 62°56’18,2” O.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H