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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte XLVIII - Viagem da “Real Escolta” – IV


A Terceira Margem – Parte XLVIII - Viagem da “Real Escolta” – IV - Gente de Opinião

Bagé, 18.09.2020

 

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XVII

 

Viagem da “Real Escolta” – IV

 

No dia 04.10.1749, tendo chegado de madrugada a canoinha que ficou na Aldeia, sem negociar coisa de consideração, se celebrou Missa na referida Praia, por ser o dia dedicado a S. Francisco de Assis, em cujo obséquio se apelidou a Ilha do nome deste Santo, e partindo às sete horas no rumo de Susudoeste, se deixou à mão direita uma grande Praia de areia, e com o rumo do Sul se navegou a buscar duas Ilhas ([1]) que estavam à parte esquerda, em cuja margem há bastantes cacoais; porém as terras da ribanceira, que têm por detrás um grande Lago ([2]), são soltas, e continuamente estão caindo com árvores mui grandes, que aí se produzem; este passo [de que há muitos por uma e outra margem deste Rio] é o de maior perigo e o mais formidável que se pode imaginar, e finalmente não tem até às Cachoeiras outro Rio de maior consequência esta navegação. As Ilhas referidas que estão uma junto da outra se chamam de Carapanatuba pelo idioma dos índios, e no português significa terra de muito mosquito; com o mesmo nome se apelida o Lago (149), de que já se fez menção. Passando as referidas Ilhas no rumo de Sudoeste que assim correm ambas costeando a parte esquerda, no meio de uma enseada há uma ponta de pedras, em que de Rio cheio faz uma grande correnteza e, neste lugar, pelas 4 horas da tarde, foram vistos alguns gentios assentados nas pedras que, avistando uma canoa ligeira em que iam por exploradores um Soldado e dois índios, se meteram para o mato a observar, e feito sinal para se prevenirem as mais canoas, logo que estas foram chegando, desapareceram os gentios das vigias, e se recolheram ao interior. Vencida a correnteza das pedras, sem se dar mostras de que se fazia caso do encontro, se passaram as canoas à outra parte do Rio a buscar um canal que há entre a terra e a Ilha do Jacaré ([3]), por quanto o caminho da parte Oriental tem grande correnteza, e de Rio cheio faz no meio do canal um sorvedouro ([4]) que dá grande trabalho para se escapar dela, e costeando a enseada da parte Ocidental, cuja ribanceira é de terra solta, buscamos a Praia da Ilha, e nela se portou à noite com as cautelas necessárias. No canal da parte Ocidental, deságua um Lago chamado também do Jacaré ([5]); neste dia, em cinco horas e meia de caminho, se andara três léguas.

 

A 05.10.1749, continuando viagem, se costeou à parte direita no rumo do Sul e Susudoeste e com três horas de caminho a remo, se encontrou a Ilha nomeada de José João ([6]), tomou este nome de um morador do Pará assim chamado que muitos anos fazia nela feitoria de cacau, de que a mesma Ilha é abundante, e logo junto desta Ilha se seguia outra mais pequena, mas com uma grande Praia que se prolongava ao comprimento do Rio, o qual se foi continuando a navegar no rumo do Sul e Sudoeste, e logo ao lado Ocidental pouco acima da referida Praia, em cuja margem havia junto à terra um areal, se viu um posto que mostrava ser frequentado de gentio, porém não se avistou nenhum.

 

Passada uma ponta de pedras à parte esquerda, em que o Rio é mais estreito, está um Lago a que os índios dão o nome de Matamatá: nele não há mais que tartarugas, de que os gentios se aproveitam. Atravessou-se o Rio à parte direita, e já quase noite portamos na margem junto à ribanceira, por não haver Praia nem Ilha, onde se pudesse pernoitar com mais segurança. Neste dia, em oito horas de caminho, a maior parte a vela, se andaria quatro léguas, no discurso das quais se não ofereceu mais coisa alguma que notar, porquanto as terras são alagadiças, o arvoredo todo silvestre pelas margens, sem dar indício de que nele houvesse préstimo.

 

No dia 06.10.1749, se principiou viagem no rumo de Oeste, Sudoeste e Susudoeste, costeando a margem direita, e com dez horas de caminho a remo e vela se andaria seis léguas, sem no decurso delas haver coisa de que se desse fazer memórias. A 07.10.1749, se continuou viagem navegando ao Sul, costeando a parte direita, e com duas horas de caminho a remo se avistou à parte esquerda o Rio chamado Aripuanã ([7]) e, atravessando a examinar a sua desembocadura, se achou teria de largura oitenta braças ([8]), mostrando a sua direção ser quase de Leste para Oeste; a água deste Rio era clara e de melhor gosto que a do Madeira, no qual deságua defronte de uma Ilheta ([9]) de figura quase ovada que corre de Norte a Sul no mesmo Madeira em mui pequena distância da margem em que faz Barra o referido Aripuanã, no qual habitam algumas nações de gentio, razão por que se não tem navegado para saber ao certo a sua origem e a qualidade das terras por que discorre.

 

Deixando a Boca de Aripuanã, se prosseguiu viagem ao rumo de Sudoeste costeando à esquerda, em cuja margem junto ao mato se achou uma casca de pau de três braças ([10]) de comprido, e meia de largo, atracadas as extremidades com cipós em forma que faziam popa e proa de embarcação, deixando no meio uma concavidade de pouco mais de dois palmos, e desta qualidade são as de que usa o gentio, de todo o Rio; e nesta que se achou tinham ido alguns àquele sítio, e que estariam no mato na diligência de alguma caça; por quanto semelhantes embarcações nunca o gentio as tem nos seus portos, sem as guardarem debaixo da água; e de mergulho as vão desatar, e fazem boiar para se servirem delas. Esta que se topou sustentava dentro quatro pessoas com aptidão para poderem remar e navegar, mas em ocasião de tranquilidade porque, a haver quaisquer ondas por pequenas que sejam, alagam a embarcação, de cujas casualidades se sabem livrar admiravelmente os gentios, pondo-se a nado esgotando-lhe uns a água, e os outros guardando as flechas, que é ordinariamente o cabedal ([11]) de mais importância que os acompanha. Continuou-se viagem no rumo de Oeste a buscar a Ilha chamada dos Araras ([12]), que se avista da Boca do Aripuanã já referido e, chegando a ela, se achou ser de terra firme, e nela habitava uma nação de gentio chamada dos Araras, donde toma o nome a mesma Ilha, a qual forma o Madeira quase com igual distância de água por uma e outra parte, que será de duzentas braças no mais largo; corre esta Ilha com as enseadas do Rio por espaço de duas léguas, que tanto terá de comprimento, a largura não se pode ajuizar ao certo o que terá.

 

Navegou-se entre a dita Ilha e margem da parte esquerda no rumo de Sudoeste, costeando uma enseada que se terminou com uma ponta de pedras, em que havia uma grande correnteza, e antes de chegar à referida ponta, desaguava um pequeno Lago ([13]) e, depois de passada a correnteza, desembocava outro também de igual entidade. Em pouca distância deste sítio, na mesma margem, portaram as canoas em uma Ilheta de pedras que havia em pouca distância de terra, mas não aparece em tempo de Rio cheio, por ser a sua elevação a metade menos da que tem a ribanceira da terra, que também alaga com a cheia. Neste dia, em oito horas de caminho, se andara pouco mais de três léguas em razão de não haver vento.

 

Da Ilheta de pedras se principiou viagem ([14]) às 8 horas  no rumo de Susueste, costeando a parte esquerda e, antes de chegar à ponta da enseada, deságua um Lago de pouca consideração ([15]); e seguindo o rumo do Sul, depois de passar uma Praia de areia que há na referida ponta, se encontrou com a maior correnteza que até aquela parte se havia topado, porquanto havendo uma Ilha ([16]) no meio do Rio com uma grande Praia, que se avizinha à da ponta mencionada, fazia a água grande força pelo pouco fundo que havia por todas as partes, e foi preciso arrimar as canoas à Ilha, e puxá-las à corda até horas de jantar em que se descansou. Na margem da parte direita defronte da ponta desta Ilha, estando um Antônio Correia, morador do Pará, em sua feitoria de cacau, o investiram nela de noite os Muras, e o mataram a flechadas e a cinco índios domésticos.

 

Continuando logo viagem no rumo de Susudoeste com o mesmo impulso da corda junto à Praia da Ilha, sucedeu apartar-se das canoas grandes uma ligeira de exploradores e, passando à parte esquerda da margem, saíram de repente à ribanceira coisa de dez ou 12 gentios Muras, e largaram sobre a canoinha uma descarga de flechas, das quais não perigou pessoa alguma, e tendo-se da canoinha o acordo de usar das suas espingardas, se retiraram logo os agressores, e não foram mais vistos em todo o resto da tarde, que foi preciso gastar na condução das canoas à corda enquanto se costeava a referida Ilha, na qual se pernoitou aquela noite com grande vigilância e cautela. Neste dia, em 8 horas de caminho, se venceram 3 léguas, em razão do embaraço da correnteza, a qual ficou vencida até o lugar mencionado em que pernoitou.

 

No dia 09.10.1749, sendo já dia claro, se deu princípio à viagem buscando a margem esquerda continente à em que apareceu o gentio, e costeando no rumo de Susudoeste abeirando uma Praia que havia daquela parte, se achou na areia da mesma uma flecha cravada, que disseram os práticos era sinal que o gentio fazia de desafio, e entendendo-se que os bárbaros nos estariam esperando na ponta da enseada, onde havia correnteza; se caminhou por ela com o cuidado necessário. Não houve novidade nesta passagem, porém indo a dobrar outra ponta que se seguia, descobriram as duas canoinhas da vanguarda cinco canoetas de gentio, navegando para baixo mui junto da ribanceira, e sem mostrar receio se empenhavam no encontro; porém apenas avistaram a primeira canoa grande, com incrível ligeireza saltaram em terra, e sumiram as cascas de pau em que navegavam, de sorte que nem rasto se achou de nada.

 

Eram estas canoas da qualidade da que acima se dá notícia. Do meio da enseada, passada a referida ponta, se atravessou a parte direita em que havia ribanceira mais alta, e há no seu interior bastante cacaual, e se foi costeando no rumo de Susudoeste, e Oessudoeste, e ultimamente a Sudoeste, até chegar à Ilha chamada Mataurá ([17]), defronte da qual portaram as canoas em uma ponta de terra baixa, aonde não havia receio de ataque, sem embaraço de que sempre se passou a noite com as cautelas costumadas. Quase defronte desta Ilha deságua, pela parte esquerda, um Riachão ([18]), de que a Ilha toma o nome, de sorte que uma e outra coisa se chama Mataurá.

 

Não houve ocasião de se lhe examinar a Barra, por se chegar de noite à sua vizinhança, mas dizem os práticos ser de menor grandeza que o Rio Aripuanã já mencionado no dia sete, e que neste Mataurá habitam várias nações de gentio. A enseada em que deságua, que é até a ponta donde saíam as canoinhas, é superior a enchente do Rio, e mostrava ser de boa qualidade para lavrar porque o arvoredo, além de ser alto e frondoso, era limpo da espessura ordinária, que há nas partes que alaga o Rio. Na viagem deste dia, em sete horas e meia de caminho se andaria três léguas. (G. FONSECA, 1826) (Continua...)

 

 

Bibliografia

 

G. FONSECA, J.. Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas – Portugal – Lisboa – Academia Real das Ciências – Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses, ou lhe são Vizinhas, Volume 4, n° 1, 1826.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]   Ilhas: Carapanatuba e Ganchos.

[2]   Lago: Lagoas Chata, Branca e Preta.

[3]   Ilha do Jacaré: 04°50’54,4” S / 59°56’35,3” O.

[4]   Sorvedouro: Caldeirão.

[5]   Jacaré: Lagoa Grande.

[6]   José João: 04°54’09,7” S / 60°07’34,1” O.

[7]   Aripuanã: 05°07’10,3” S / 60°23’05,4” O.

[8]   Oitenta braças: 176 m.

[9]   Ilheta: Ilha S. Luzia.

[10]  Três braças: 6,6 m.

[11]  Cabedal: bem.

[12]  Araras: Ilha Santa Luzia.

[13]  Lago: Castanhal – 05°07’48,2” S / 60°25’12,8” O.

[14]  Se principiou viagem: 8 de outubro de 1749.

[15]  Lago de pouca consideração: 05°15’42,6” S / 60°33’12,7” O.

[16]  Ilha: Ilha do Uruá – 05°20’49,5” S / 60°43’58,6” O.

[17]  Mataurá: 05°31’47,9” S / 60°52’51,8” O.

[18]  Riachão: Rio Mataurá – 05°27’59,0” S / 60°43’58,9” O.

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