Sábado, 19 de setembro de 2020 - 11h39
Bagé, 18.09.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XVII
Viagem da “Real
Escolta” – IV
No
dia 04.10.1749, tendo chegado de madrugada a canoinha que ficou na Aldeia, sem
negociar coisa de consideração, se celebrou Missa na referida Praia, por ser o
dia dedicado a S. Francisco de Assis, em cujo obséquio se apelidou a Ilha do
nome deste Santo, e partindo às sete horas no rumo de Susudoeste, se deixou à
mão direita uma grande Praia de areia, e com o rumo do Sul se navegou a buscar
duas Ilhas ([1]) que estavam à parte
esquerda, em cuja margem há bastantes cacoais; porém as terras da ribanceira,
que têm por detrás um grande Lago ([2]),
são soltas, e continuamente estão caindo com árvores mui grandes, que aí se
produzem; este passo [de que há muitos por uma e outra margem deste Rio] é o de
maior perigo e o mais formidável que se pode imaginar, e finalmente não tem até
às Cachoeiras outro Rio de maior consequência esta navegação. As Ilhas referidas
que estão uma junto da outra se chamam de Carapanatuba pelo idioma dos índios,
e no português significa terra de muito mosquito; com o mesmo nome se apelida o
Lago (149), de que já se fez menção. Passando as referidas Ilhas no
rumo de Sudoeste que assim correm ambas costeando a parte esquerda, no meio de
uma enseada há uma ponta de pedras, em que de Rio cheio faz uma grande
correnteza e, neste lugar, pelas 4 horas da tarde, foram vistos alguns gentios
assentados nas pedras que, avistando uma canoa ligeira em que iam por
exploradores um Soldado e dois índios, se meteram para o mato a observar, e
feito sinal para se prevenirem as mais canoas, logo que estas foram chegando,
desapareceram os gentios das vigias, e se recolheram ao interior. Vencida a
correnteza das pedras, sem se dar mostras de que se fazia caso do encontro, se
passaram as canoas à outra parte do Rio a buscar um canal que há entre a terra
e a Ilha do Jacaré ([3]),
por quanto o caminho da parte Oriental tem grande correnteza, e de Rio cheio faz
no meio do canal um sorvedouro ([4])
que dá grande trabalho para se escapar dela, e costeando a enseada da parte
Ocidental, cuja ribanceira é de terra solta, buscamos a Praia da Ilha, e nela
se portou à noite com as cautelas necessárias. No canal da parte Ocidental,
deságua um Lago chamado também do Jacaré ([5]);
neste dia, em cinco horas e meia de caminho, se andara três léguas.
A 05.10.1749, continuando viagem, se costeou à parte
direita no rumo do Sul e Susudoeste e com três horas de caminho a remo, se
encontrou a Ilha nomeada de José João ([6]),
tomou este nome de um morador do Pará assim chamado que muitos anos fazia nela
feitoria de cacau, de que a mesma Ilha é abundante, e logo junto desta Ilha se
seguia outra mais pequena, mas com uma grande Praia que se prolongava ao
comprimento do Rio, o qual se foi continuando a navegar no rumo do Sul e
Sudoeste, e logo ao lado Ocidental pouco acima da referida Praia, em cuja
margem havia junto à terra um areal, se viu um posto que mostrava ser
frequentado de gentio, porém não se avistou nenhum.
Passada
uma ponta de pedras à parte esquerda, em que o Rio é mais estreito, está um
Lago a que os índios dão o nome de Matamatá: nele não há mais que tartarugas,
de que os gentios se aproveitam. Atravessou-se o Rio à parte direita, e já
quase noite portamos na margem junto à ribanceira, por não haver Praia nem
Ilha, onde se pudesse pernoitar com mais segurança. Neste dia, em oito horas de
caminho, a maior parte a vela, se andaria quatro léguas, no discurso das quais
se não ofereceu mais coisa alguma que notar, porquanto as terras são
alagadiças, o arvoredo todo silvestre pelas margens, sem dar indício de que
nele houvesse préstimo.
No
dia 06.10.1749, se principiou viagem no rumo de Oeste, Sudoeste e Susudoeste,
costeando a margem direita, e com dez horas de caminho a remo e vela se andaria
seis léguas, sem no decurso delas haver coisa de que se desse fazer memórias. A
07.10.1749, se continuou viagem navegando ao Sul, costeando a parte direita, e
com duas horas de caminho a remo se avistou à parte esquerda o Rio chamado
Aripuanã ([7])
e, atravessando a examinar a sua desembocadura, se achou teria de largura
oitenta braças ([8]), mostrando a sua direção
ser quase de Leste para Oeste; a água deste Rio era clara e de melhor gosto que
a do Madeira, no qual deságua defronte de uma Ilheta ([9])
de figura quase ovada que corre de Norte a Sul no mesmo Madeira em mui pequena
distância da margem em que faz Barra o referido Aripuanã, no qual habitam
algumas nações de gentio, razão por que se não tem navegado para saber ao certo
a sua origem e a qualidade das terras por que discorre.
Deixando
a Boca de Aripuanã, se prosseguiu viagem ao rumo de Sudoeste costeando à
esquerda, em cuja margem junto ao mato se achou uma casca de pau de três braças
([10])
de comprido, e meia de largo, atracadas as extremidades com cipós em forma que
faziam popa e proa de embarcação, deixando no meio uma concavidade de pouco
mais de dois palmos, e desta qualidade são as de que usa o gentio, de todo o
Rio; e nesta que se achou tinham ido alguns àquele sítio, e que estariam no
mato na diligência de alguma caça; por quanto semelhantes embarcações nunca o
gentio as tem nos seus portos, sem as guardarem debaixo da água; e de mergulho
as vão desatar, e fazem boiar para se servirem delas. Esta que se topou sustentava
dentro quatro pessoas com aptidão para poderem remar e navegar, mas em ocasião
de tranquilidade porque, a haver quaisquer ondas por pequenas que sejam, alagam
a embarcação, de cujas casualidades se sabem livrar admiravelmente os gentios,
pondo-se a nado esgotando-lhe uns a água, e os outros guardando as flechas, que
é ordinariamente o cabedal ([11])
de mais importância que os acompanha. Continuou-se viagem no rumo de Oeste a
buscar a Ilha chamada dos Araras ([12]),
que se avista da Boca do Aripuanã já referido e, chegando a ela, se achou ser
de terra firme, e nela habitava uma nação de gentio chamada dos Araras, donde
toma o nome a mesma Ilha, a qual forma o Madeira quase com igual distância de
água por uma e outra parte, que será de duzentas braças no mais largo; corre
esta Ilha com as enseadas do Rio por espaço de duas léguas, que tanto terá de
comprimento, a largura não se pode ajuizar ao certo o que terá.
Navegou-se
entre a dita Ilha e margem da parte esquerda no rumo de Sudoeste, costeando uma
enseada que se terminou com uma ponta de pedras, em que havia uma grande
correnteza, e antes de chegar à referida ponta, desaguava um pequeno Lago ([13])
e, depois de passada a correnteza, desembocava outro também de igual entidade.
Em pouca distância deste sítio, na mesma margem, portaram as canoas em uma
Ilheta de pedras que havia em pouca distância de terra, mas não aparece em
tempo de Rio cheio, por ser a sua elevação a metade menos da que tem a
ribanceira da terra, que também alaga com a cheia. Neste dia, em oito horas de
caminho, se andara pouco mais de três léguas em razão de não haver vento.
Da
Ilheta de pedras se principiou viagem ([14])
às 8 horas no rumo de Susueste,
costeando a parte esquerda e, antes de chegar à ponta da enseada, deságua um
Lago de pouca consideração ([15]);
e seguindo o rumo do Sul, depois de passar uma Praia de areia que há na
referida ponta, se encontrou com a maior correnteza que até aquela parte se
havia topado, porquanto havendo uma Ilha ([16])
no meio do Rio com uma grande Praia, que se avizinha à da ponta mencionada,
fazia a água grande força pelo pouco fundo que havia por todas as partes, e foi
preciso arrimar as canoas à Ilha, e puxá-las à corda até horas de jantar em que
se descansou. Na margem da parte direita defronte da ponta desta Ilha, estando
um Antônio Correia, morador do Pará, em sua feitoria de cacau, o investiram
nela de noite os Muras, e o mataram a flechadas e a cinco índios domésticos.
Continuando logo viagem no rumo de Susudoeste com o
mesmo impulso da corda junto à Praia da Ilha, sucedeu apartar-se das canoas
grandes uma ligeira de exploradores e, passando à parte esquerda da margem,
saíram de repente à ribanceira coisa de dez ou 12 gentios Muras, e largaram
sobre a canoinha uma descarga de flechas, das quais não perigou pessoa alguma,
e tendo-se da canoinha o acordo de usar das suas espingardas, se retiraram logo
os agressores, e não foram mais vistos em todo o resto da tarde, que foi
preciso gastar na condução das canoas à corda enquanto se costeava a referida Ilha,
na qual se pernoitou aquela noite com grande vigilância e cautela. Neste dia,
em 8 horas de caminho, se venceram 3 léguas, em razão do embaraço da
correnteza, a qual ficou vencida até o lugar mencionado em que pernoitou.
No
dia 09.10.1749, sendo já dia claro, se deu princípio à viagem buscando a margem
esquerda continente à em que apareceu o gentio, e costeando no rumo de
Susudoeste abeirando uma Praia que havia daquela parte, se achou na areia da
mesma uma flecha cravada, que disseram os práticos era sinal que o gentio fazia
de desafio, e entendendo-se que os bárbaros nos estariam esperando na ponta da
enseada, onde havia correnteza; se caminhou por ela com o cuidado necessário.
Não houve novidade nesta passagem, porém indo a dobrar outra ponta que se seguia,
descobriram as duas canoinhas da vanguarda cinco canoetas de gentio, navegando
para baixo mui junto da ribanceira, e sem mostrar receio se empenhavam no
encontro; porém apenas avistaram a primeira canoa grande, com incrível
ligeireza saltaram em terra, e sumiram as cascas de pau em que navegavam, de
sorte que nem rasto se achou de nada.
Eram
estas canoas da qualidade da que acima se dá notícia. Do meio da enseada,
passada a referida ponta, se atravessou a parte direita em que havia ribanceira
mais alta, e há no seu interior bastante cacaual, e se foi costeando no rumo de
Susudoeste, e Oessudoeste, e ultimamente a Sudoeste, até chegar à Ilha chamada
Mataurá ([17]), defronte da qual
portaram as canoas em uma ponta de terra baixa, aonde não havia receio de
ataque, sem embaraço de que sempre se passou a noite com as cautelas
costumadas. Quase defronte desta Ilha deságua, pela parte esquerda, um Riachão
([18]),
de que a Ilha toma o nome, de sorte que uma e outra coisa se chama Mataurá.
Não
houve ocasião de se lhe examinar a Barra, por se chegar de noite à sua
vizinhança, mas dizem os práticos ser de menor grandeza que o Rio Aripuanã já
mencionado no dia sete, e que neste Mataurá habitam várias nações de gentio. A
enseada em que deságua, que é até a ponta donde saíam as canoinhas, é superior
a enchente do Rio, e mostrava ser de boa qualidade para lavrar porque o
arvoredo, além de ser alto e frondoso, era limpo da espessura ordinária, que há
nas partes que alaga o Rio. Na viagem deste dia, em sete horas e meia de
caminho se andaria três léguas. (G. FONSECA, 1826) (Continua...)
Bibliografia
G. FONSECA, J.. Notícias para a História e
Geografia das Nações Ultramarinas – Portugal – Lisboa – Academia Real das
Ciências – Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações
Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses, ou lhe são Vizinhas, Volume
4, n° 1, 1826.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Ilhas: Carapanatuba e Ganchos.
[2] Lago: Lagoas Chata, Branca e Preta.
[3] Ilha do Jacaré: 04°50’54,4” S / 59°56’35,3” O.
[4] Sorvedouro: Caldeirão.
[5] Jacaré: Lagoa Grande.
[6] José João: 04°54’09,7” S / 60°07’34,1” O.
[7] Aripuanã: 05°07’10,3” S / 60°23’05,4” O.
[8] Oitenta braças: 176 m.
[9] Ilheta: Ilha S. Luzia.
[10] Três braças: 6,6 m.
[11] Cabedal: bem.
[12] Araras: Ilha
Santa Luzia.
[13] Lago: Castanhal
– 05°07’48,2” S / 60°25’12,8” O.
[14] Se principiou viagem: 8 de outubro de 1749.
[15] Lago de pouca consideração: 05°15’42,6” S / 60°33’12,7” O.
[16] Ilha: Ilha do Uruá – 05°20’49,5” S / 60°43’58,6” O.
[17] Mataurá: 05°31’47,9” S / 60°52’51,8” O.
[18] Riachão: Rio Mataurá – 05°27’59,0” S / 60°43’58,9” O.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H