Terça-feira, 8 de setembro de 2020 - 18h18
Bagé, 08.09.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte VIII
“BANDEIRA” de Antônio Raposo Tavares – IV
Revista de História, n° 45
São Paulo, SP –
Janeiro/Março, 1961
A Maior Bandeira
do Maior Bandeirante ([1])
[Jaime Cortesão – Conclusão]
[...] A esta data, estes conhecimentos, tão
exatos para a época, não podiam relacionar-se senão com a Bandeira de Raposo
Tavares. Na história da cartografia só nos começos do século XVIII os mapas dos
jesuítas [1703] e dos cartógrafos franceses, como Guillaume de L’Iale [1703],
começam a traçar o Rio Grande ou Guapaí, desde as origens, cerca de Cochabamba,
e com a característica curva do seu alto curso. Mas, pelo que respeita às
Latitudes mais elevadas do traçado e à direção geral do Madeira, essas cartas
mostram-se ainda muito inferiores à descrição do Padre Antônio Vieira.
Finalmente, o Conde de Castelar, Vice-rei
do Peru, referia-se, em 1667, às correrias dos paulistas, que assolavam a
Província do Paraguai, levando os índios como escravos:
y con este ejercicio llegando hasta la población de Santa Cruz de la
Sierra, y extendiéndose por más de 800 leguas hasta el rio Marañon o de las
Amazonas [Documentos Interessantes, v. 47, pág. 27].
Esta etapa pela povoação de Santa Cruz
confirma também e inteiramente o trajeto pelo Guapaí. E aqui chegados propomos
um problema. Ter-se-iam limitado Raposo Tavares e os seus companheiros a
visitar Santa Cruz de la Sierra, pequeno burgo, àquela data paupérrimo de
habitantes e recursos? Eles próprios ausentes há mais de ano de São Paulo,
desfalcados de alimento, vestimentas e apetrechos pelas terríveis inclemências
da travessia, não teriam buscado alguma ou algumas das grandes cidades andinas
para refazer-se?
Se a essa certíssima urgência somarmos a
circunstância de muitos portugueses e, entre eles, alguns paulistas, enxamearem
nessas cidades, cuja fama retumbava em todo o mundo, temos por absurdo que
Raposo Tavares e alguns dos seus companheiros não tivessem penetrado em La
Plata, quase sobre o seu caminho e, por ventura na então legendária Potosi. Não
rejeitamos até a hipótese ‒ mera hipótese ‒ de que ele houvesse chegado a Lima,
de cujas eminências se avista o Pacífico a curtíssima distância, dando assim
mais realidade à lenda.
Não teria então a Bandeira alcançado Quito?
Os documentos, que se referem ao percurso total da Bandeira podem dividir-se em
duas categorias; os que pertencem aos próprios Bandeirantes ou procedem
diretamente deles; e os que se lhes referem em lugares ou época recuada. Só
estes últimos, um dos quais escrito em Lisboa, em 1674, e outro, meio século
mais tarde, se referem à passagem por Quito e à descida desde esta cidade pelo
Amazonas.
Nenhum dos outros documentos, mais dignos
de fé e que são a quase totalidade, mencionam esse fato. Observe-se que até
hoje não encontramos na documentação espanhola qualquer referência donde
pudesse inferir-se semelhante traçado. Esta carência assume proporções de um
desmentido, quando se trata da “Relación
de los Maynas” do Padre Francisco de Figueroa, que à data da realização da
Bandeira habitava no Marañon e, naquela hipótese, era natural, quase fatal a
referisse.
Como explicar então a divergência? A carta
de Vieira e o próprio depoimento do segundo comandante da Bandeira estão de
acordo em considerar a viagem pelo Madeira como um descobrimento do próprio
Amazonas, no seu curso principal, e não de um afluente. Na carta de nomeação de
Antônio Pereira de Azevedo para provedor da fazenda da Capitania do Espírito
Santo, diz-se do nomeado e transcrevendo do seu próprio requerimento:
e estando servindo na capitania de São Vicente foi no descobrimento do
Rio das Amazonas em cuja jornada gastou tempo largo e viu morrer a maior parte
de seus companheiros à fome e à sede; e vindo sair à parte do Maranhão e
Pará...
Não só Antônio Pereira de Azevedo, mas, ao
que parece, também as estâncias oficiais de Lisboa, consideravam a viagem, no
objetivo e resultados, como o descobrimento do Amazonas. Vieira, por sua vez,
chama ao curso do verdadeiro Amazonas e Marañon, incluindo o Napo, e por comparação
com o rio navegado pelos bandeirantes, “outro
braço” do Amazonas. Ao que supomos, pois, terá havido um documento inicial,
primeiro relato dos bandeirantes, em que estes afirmavam que haviam atingido o
Peru, donde haviam baixado pelo Amazonas desde o seu nascimento.
O secretário do Conselho Ultramarino e o
governador Berredo interpretaram mais tarde esse texto, à luz dos seus
conhecimentos geográficos. Para os dois descobrir o Amazonas desde as suas
fontes, implicava, segundo a concepção corrente na época, passar por Quito e
daí baixar até ao curso principal do Rio. Trata-se, ao que supomos, de um
equívoco, que assenta numa dualidade de concepções, em tempo de geografia
incerta.De qualquer forma esses dois testemunhos não podem invalidar o requerimento
de Pereira de Azevedo, a carta de Vieira, a do Conde de Castelar e a relação de
Heriarte, mais dignos de fé e todos acordes entre si.
Resta-nos acrescentar que, só volvido mais
de um século sobre a grande Bandeira de Raposo Tavares, a documentação escrita
ou cartográfica dos espanhóis acusa um conhecimento do Guapaí igual ao dos
paulistas em 1650. O mesmo poderemos dizer quanto à sua navegação.Aliás, este
tardio conhecimento da navegação do Rio Grande desde os contrafortes andinos
até à planície cruzenha, dá a medida das qualidades humanas e da cultura
geográfica que representavam o Bandeirismo em meados do século XVII.O Padre
Antônio Vieira eleva ao último grau da hipérbole os trabalhos sofridos por esta
Bandeira, em especial na travessia do Paraguai, e até embarcar no Rio Grande.
Passado um mês sobre o ataque à redução de Mboymboy, diz êle na sua carta:
se viram os executores dele castigados com a fome, peste e guerra. A
peste foi tal que nenhum deles ficou que não adoecesse mortalmente; a fome era
quase extrema, porque as raízes e frutos das árvores eram o maior regalo dos
enfermos... sobretudo no meio desta fraqueza e desamparo eram continuamente
assaltados de bárbaros de pé e de cavalo, que os atravessavam com flechas.
E chama a essas provações:
as maiores misérias que jamais se passaram.
Nesta parte a narração de Vieira é
inteiramente corroborada por outro jesuíta, o Padre Altamirano. Tais desastres
referem-se principalmente à tropa de Antônio Pereira, que atacou Mboymboy. E já
vimos como este se lhe refere no seu trágico laconismo:
viu morrer a maior parte de seus companheiros à fome e à sede.
Mas o Padre Vieira, na sequência do relato,
continua a desfiar durezas de combate, ciladas de índios e trabalhos de toda a
espécie na região dos Serranos. Depois tiveram de marchar dias a fio com as
canoas às costas, na planície cruzenha e nós sabemos que lhes foi necessário
repetir a operação mais de dez vezes, em piores condições, ao baixar as quedas
do Madeira. Não dissente destes relatos o Padre Souza Ferreira, pois afirma que
nas campinas alagadas do Paraguai, andaram dias inteiros com a roupa pela
cabeça e a água pela barba, e aos combates com os índios acrescenta que os
Bandeirantes tiveram seus recontros com os castelhanos do Peru, confirmado
nesta parte por Berredo. Vieira, que tão asperamente censura estes mesmos
Bandeirantes, pelos, desacatos cometidos contra os jesuítas espanhóis, um dos
quais morreu em combate, todavia não hesita, num momento de assombro, em
proclamar dessa empresa:
que verdadeiramente foi uma das mais notáveis que até hoje se tem feito
no mundo.
Mas seriam esses Bandeirantes tão ímpios e
cruéis com os sacerdotes da Companhia, como afirmam “una voce” ([2])
Vieira e os seus confrades espanhóis?
Lendo com atenção as cartas e relações
destes últimos, apura-se que a verdade era outra. Que esses homens, capazes de
jogar tão facilmente a vida própria não respeitassem mais a alheia, é de crer.
Aplicavam aos demais a lei do perigo em que viviam. Sua vida tão cheia de
terríveis asperezas, não tinha o mesmo valor que para nós. Mas o Padre Bonilla
descrevendo o assalto da tropa de Antônio Pereira aos Itatins, em novembro de 1648,
falando da detenção por alguns dias do Padre Cristobal de Arenas, confessa:
Verguenza me da el tratamiento que en ciudad de la Asunción se hace a la
Compañía, cuando sigo al Padre C. de Arenas contar la cortesía con que estos
enemigos le trataran así de palabra como de obra en su sustento y regalo que se
compadecía con la cuantidad que allí había.
Acusa o Padre Vieira, é certo, esses
Bandeirantes de haver despojado a Igreja da redução assaltada de vestiduras e
vasos sagrados. Mas o Padre Altamirano contava, em 1554 que depois de
atravessado o Paraguai:
hollando el caudillo a los pocos que habían queda-do, les dijo que
aquella mortandad y despejo eran conocidamente venganza de la muerte y despojo
de aquel ministro del Señor. E pareciéndoles que aplicarían algo su ira, con
restituir los ornamentos y cosas sagradas, que llevaban, lo hicieron luego,
despachándote todo con un indio que remetieren, aunque tarde a los Padres.
O fato despido de interpretação, mais ou
menos forçada do narrador, é este: chegada a tropa de Antônio Pereira ao
acampamento de Santiago, Raposo Tavares mandou devolver aos jesuítas o produto
do saque da Igreja. Para o carregar bastou um índio, o que prova também que o
despojo fora diminuto.
Estes homens, pois, que pecavam por assomos
e atos de violência, eram capazes de cortesia, humanidade e nobreza. Em
conclusão:
A Bandeira de Raposo Tavares foi
essencialmente uma Expedição de descobrimento geográfico e de minas,
relacionada com o problema dos limites e as dificuldades financeiras e
políticas em que se debatia o Reino, após a Restauração da Independência. Ela
foi também a primeira Expedição de reconhecimento geográfico que abrangeu todo
o espaço continental da América do Sul, compreendido entre as ribas do Atlântico
e a cordilheira andina, entre o Trópico de Capricórnio e o Equador,
alargando-se por cerca de 23° de Latitude e vinte de Longitude, maior e mais
árdua de quantas se realizaram em toda a América, não só até à sua data, mas
ainda até aos começos do século XIX.
Pondo de parte o trajeto andino e
considerado apenas o percurso fluvial do Tietê ao Paraguai e daí por terra ao
Guapaí, e baixando por ele o Madeira e o Amazonas até Belém esse vasto périplo
mede 10.000 quilômetros, números redondos. Se lhe acrescentarmos o trajeto do
Chaco e os percursos de desvio na região das cidades andinas, terá excedido por
certo os 12.000 quilômetros.
Para falar apenas das mais notáveis
expedições realizadas antes e depois de Raposo Tavares, o descobrimento de
Orellana em 1541, embora épico pelo arrojo, limitou-se a baixar o Amazonas e
sempre nas mesmas Latitudes.
As de La Salle, o grande explorador francês
do Mississipi, entre 1679 e 1682, desenvolveram-se em clima temperado e quase
que exclusivamente no sentido do Meridiano.
Duas expedições: a de Lewis e Clark que,
entre 1804 e 1806, exploraram o médio e alto Missouri e o Colúmbia até ao
Pacífico, embora tão notável pela audácia e os resultados, desenvolve-se num
espaço continental de trinta e três graus de Longitude, mas muito reduzido em
Latitude, por consequência, de um âmbito muito menor.
Talvez, e para terminar, a melhor forma de
definir a personalidade de Raposo Tavares, seja por comparação com outro dos
grandes Bandeirantes, seus pares.
Dissemos, de princípio, que Fernão Dias
Pais se afigurava o protótipo do Bandeirante, isto é, o mais evoluído e
diferenciado pelas capacidades e virtudes gentílicas da sua grei. Homem que
obedecia a um conceito e imperativo ibérico de honra, Quixote do sertão, levou
até à loucura a obsessão e o sacrifício, na sua luta com o fantástico moinho de
vento das Esmeraldas. Como os poetas, os filósofos e os místicos, ele pertence
também, pela vontade e a ação, à raça rara dos enamorados do Absoluto. Lembra
aqueles terríveis patriarcas bíblicos, que sacrificavam os filhos a Jeová; que
permaneciam, como Jó, sob a torrente devastadora dos flagelos e das
catástrofes, inabalavelmente fiéis à sua Lei; ou morriam numa agonia, ao mesmo
tempo estática e pungente, à vista da Terra da Promissão.
Há nele qualquer coisa de abstrato e de
irreal, que transcende o homem. Sabemos que viveu. Conhecemos documentalmente a
sua história. E, todavia, aureolado pelo esplendor dos seus feitos, mais parece
um daqueles deuses tutelares, em que os povos, ricos de imaginação, à maneira
dos gregos, fundiam e idealizavam os seus maiores anseios e virtudes.
Menos diferenciado no estilo de vida e no
caráter Bandeirante e protótipo de outro tipo de expansão, Raposo Tavares, não
obstante, não lhe cede em estatura. A maior diferença que os distingue é que o
Governador das Esmeraldas viveu, pela ação, voltado para o interior. Abriu as
portas de ouro da riqueza e da independência da sua Pátria. Foi, na rigorosa
acepção da palavra, um deus-lar. O outro, Raposo Tavares, o Governador da
Aventura Continental, cujo heroísmo raia também pelo irreal, viveu de face
voltada para as fronteiras. Em Guairá, como nos Tapes, no Itatim, nos Andes ou
na Amazônia, ele busca traçar e sempre na consciência do esforço realizado, a
fronteira ideal com a América espanhola. Rasteou desde a profundidade inicial
os alicerces das nações dum continente. Foi um deus-termo, olhando ao largo, em
todos os rumos de dois quadrantes.
Para enaltecer seu esforço e bravura,
alguns historiadores brasileiros chamam a Raposo Tavares ‒ homeríada ([3]).
Seja-nos lícito fazer um reparo. Dos heróis de Homero decorreram os horrores no
Mediterrâneo, Mar interior cuja maior extensão não ultrapassa quatro mil e
quinhentos quilômetros; e cujos perigos não excediam o canto das sereias e o
agitado Mar entre Cila e Caríbedes, no doméstico estreito de Messina.
Se temos de comparar aqueles Bandeirantes a
grandes navegantes há que recorrer então aos descobridores, que afrontam os
cabos das Tormentas, que dividem os Oceanos. Como Vasco da Gama no Índico, ou
Fernão de Magalhães no Pacífico, Raposo Tavares mediu a sua grandeza pelos dois
maiores padrões da Natureza no seu gênero: os Andes e o Amazonas.
Por mais a despropósito que se tenha usado
e abusado da palavra, acreditamos que a Raposo Tavares e aos seus companheiros
cabe, sim, por justo título e direito, o qualificativo mais épico, mais nobre,
mais humano e mais brasileiro de Lusíadas. (CORTESÃO, 1961)
Bibliografia
CORTESÃO, Jaime. Conferência ‒ A Maior Bandeira do
Maior Bandeirante ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP – Revista de História, n° 45, Janeiro/Março,
1961.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Conferência inédita, proferida no Salão Nobre da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, gentilmente cedida
pela sua direção para publicação na Revista de História como homenagem ao
autor, recentemente falecido [Nota da Redação].
[2] “Una voce”: de comum
acordo, em coro, unanimemente.
[3] Homeríada: analogia com a figura do poeta Homero, considerado o
autor das epopeias Ilíada e Odisseia.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVIII
Bagé, 29.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.281, Rio, RJQuinta-feira, 21.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernande
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVII
Bagé, 27.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.279, Rio, RJQuarta-feira, 19.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernande
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVI
Bagé, 24.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.272, Rio, RJ Sábado e Domingo, 08 e 09.02.1964 Jango Atinge sua Maior M
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXV
Bagé, 22.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.268, Rio, RJ Terça-feira, 04.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernandes)