Quinta-feira, 3 de setembro de 2020 - 06h05
Bagé, 03.09.2020
Porto Velho, RO/Santarém, PA ‒ Parte V
Antes de cada
jornada, pelos Amazônicos caudais, pesquisamos os relatos dos primeiros
desbravadores de cada rota a ser percorrida para poder observar as alterações sofridas
no espaço geográfico considerado, tenham sido elas produzidas pela própria natureza
ou através de mudanças provocadas pela interferência estabelecida entre os seres
humanos e o meio ambiente.
Conhecendo o
passado e vivenciando o presente procuramos montar este curioso quebra-cabeça
que se foi fragmentando com o decorrer do tempo.
“BANDEIRA”
de Antônio Raposo Tavares – I
(Carlos Alberto Nunes)
Canto VI
Pesa-me
aquela solução, a perda
Quase definitiva
da esperança
De
alcançarmos a serra, à mente aflita
Me ocorrendo
de pronto o estratagema
De entrar
pelo sertão com os mamelucos
De São
Paulo, valendo-me do curso
Sagrado do
Anhembi, que, reforçado
Pelo
Piracicaba, prometia
Levar os
Bandeirantes onde apenas
Chega a
imaginação nos seus arroubos
Mais
sublimados [...] (ALBERTO NUNES)
Revista de História, n° 45
São Paulo, SP –
Janeiro/Março, 1961
A Maior Bandeira
do Maior Bandeirante ([1])
[Jaime Cortesão]
Antônio Raposo Tavares tem sido considerado
pelos historiadores brasileiros o maior de todos os Bandeirantes. Não obstante,
sobre o mais vasto dos seus empreendimentos pairam grandes obscuridades. Por
nossa parte, quando dizemos o maior Bandeirante relacionamos esse qualificativo
com o alcance geográfico e geopolítico das suas expedições. Se erguemos aquela
que nos vai ocupar à categoria da maior das empresas exploradoras, realizadas
por um grupo de homens e num esforço ininterrupto, em todos os tempos, nas duas
Américas, também a consideramos uma Bandeira de Estado, Estado em formação,
essencialmente política, que buscou, de um só e gigantesco impulso, sondar os
possíveis limites entre os dois grandes domínios ibéricos, na América do Sul.
Como exploradores geográficos, essas dezenas
de heróis, que foram de São Paulo a Belém do Pará, tem a grandeza do mundo que
devassaram. Mas se os consideramos como tipos sociais, esculpidos pelo tempo, o
meio, a ação e o perfeito acabamento de um caráter regional, houve sem dúvida
alguns poucos Bandeirantes maiores, e talvez Fernão Dias Pais ‒ o maior entre
os maiores. Aliás, Raposo Tavares representa um tipo diferente de expansão.
Figura épica, e mal conhecida, tendo
realizado, em pleno século XVII, por vastíssimos caminhos totalmente ignorados,
uma empresa sobre-humana, a sua personalidade revestiu-se, naturalmente, de um
esplendor lendário. O mito da existência de uma vasta Ilha Brasil, rodeada pelo
Prata e o Amazonas, teve o seu herói mítico. Essa deformação ideal alcançou,
como é sabido, expressão suprema no Quadro Histórico de Machado Oliveira.
Segundo ele:
Antônio Raposo, à frente duma partida de 60 homens, tão audazes e
aventurosos como o valente caudilho, tendo um séquito de alguns índios,
atravessou o Brasil de Sueste a Noroeste, escalando os Andes chega ao Peru,
penetra esse País, entra nas águas do Pacífico, com a espada nua levantada,
dizendo que “avassalava terra e mar para
o seu rei”, é por vezes compelido a recontros e combates com os espanhóis,
levando-os sempre de arrancada. Deixa o antigo império dos Incas e,
dirigindo-se para o Amazonas, navega esse rio em jangadas, abandonando-se à sua
corrente; desembarca em Curupá e, aí foi generosamente acolhido pelo povo, que
se assombra de tamanha audácia do paulista. O regresso de Raposo Tavares,
através dos sertões que se interpõem às duas regiões, durou anos e no cabo
deles se achou tão desfigurado que foi desconhecido por sua família e parentes.
Eis a lenda, mas uma lenda de caráter épico
e político, em que o herói, interpretado sob o ponto de vista nacional, leva a
soberania portuguesa do Atlântico ao Pacífico. Veio depois a reação e os
historiadores brasileiros buscaram entrever e definir a figura real através da
névoa lendária. Cabe ao eminente homem público e historiador Washington Luís a
primeira monografia solidamente documentada nesse novo sentido e ainda hoje
guia indispensável e exemplo a citar de aplicação do método
histórico-geográfico.
Fundando-se nos documentos conhecidos,
supôs Washington Luís que a Bandeira de Raposo Tavares, saindo de São Paulo
pelo Peabirú, fosse tomar o Paraná, na sua confluência com o Paranapanema,
passando daquele ao Paraguai, que haveria subido para embarcar no Guaporé,
descendo por ele e pelo Madeira até ao Amazonas.
A publicação posterior, e por iniciativa de
Washington Luís, das Atas da Câmara de São Paulo e peças similares, a
publicação ou divulgação de documentos essenciais, por A. Taunay, Rodolfo
Garcia, Basílio de Magalhães, Alfredo Ellis Júnior, João Lúcio de Azevedo e
Carvalho Franco, trouxeram uma base nova à interpretação da personalidade de
Raposo Tavares e da Bandeira de 1648-1651.
Dentre os documentos que a Washington Luís
não foi dado conhecer, avulta sobre todos uma carta do Padre Antônio Vieira,
infelizmente apenas conhecida em cópia muito estropiada, mas cujo original foi
escrito em começos de 1654 com o testemunho de alguns Bandeirantes, que então
permaneciam em Belém do Pará, e com quem o grande jesuíta falava em outubro de
1653 ([2]).
Outro documento, divulgado por Paulo Prado,
nas colunas do “O Estado de São Paulo”
‒ um informe do secretário do Conselho Ultramarino sobre “a gente de São Paulo” e dirigido ao Rei, em 1674, isto é, 23 anos
após a realização da bandeira, ampliava o seu trajeto pelos Andes até Quito,
donde, pelo Amazonas, Raposo Tavares haveria descido até Belém. Perante esta
afirmação que estava de acordo com os dizeres de Berredo nos Anais do Maranhão,
já no século XVIII, os historiadores paulistas, hesitaram e dividiram-se.
Uns, como Taunay e Carvalho Franco, não
rejeitam a hipótese da derivação andina até Quito, mas não a aceitam
taxativamente; Alfredo Ellis Júnior, na sua recente e notável monografia sobre
Raposo Tavares, faz suas as primeiras conclusões de Washington Luís; Júlio de
Mesquita Filho, nos seus excelentes Ensaios Sul-Americanos, inclina-se, ao
contrário, francamente para a extensão andina da Bandeira.
Apaixonados de há muito pela história das
Bandeiras e atraídos pela grandeza épica do feito de Raposo Tavares e seus companheiros,
demo-nos também durante anos a procurar pacientemente esclarecer os mistérios
que a envolvem. Os nossos esforços, ainda que em terreno tão batido, e por tão
grandes pioneiros, foram coroados de êxito, ao menos quanto ao alcance
geográfico da Expedição.
Foi-nos possível descobrir uma série de
documentos, quer de origem espanhola, e, em especial, jesuítica, quer de origem
portuguesa, na sua grande maioria inéditos, e que nos permitem completar e
esclarecer o relato de Vieira e, por essa forma, traçar, nas suas linhas
gerais, o trajeto da Bandeira.
Na sua maioria estes últimos documentos
referem-se a Antônio Pereira de Azevedo, Capitão de uma das tropas da Bandeira,
e sobre cuja identidade havia ainda dúvidas, e a Simão Pedroso, um dos
bandeirantes, que permaneceu em Belém, com outros companheiros de aventura, e
onde deve ter morrido, depois de haver prolongado na Amazônia por dezenas de
anos, suas atividades de sertanista infatigável. Os documentos sobre Antônio
Pereira de Azevedo, pertencentes aos arquivos de Lisboa, constam, entre outros,
dum requerimento, feito em Lisboa, em 1656, com exposição de serviços, entre os
quais o da Bandeira a que nos estamos referindo.
A respectiva consulta do Conselho
Ultramarino e o despacho do Rei; a sua habilitação para a Ordem de Cristo e,
finalmente, a concessão de várias mercês, entre as quais a de escudeiro fidalgo
e a de ser armado cavaleiro, quando chegasse ao Brasil. O documento principal
sobre Simão Pedroso é uma carta do Governador do Maranhão e Pará, Gomes Freire
de Andrade, dirigida, em 1687, ao Rei, com um depoimento daquele bandeirante,
em que revela alguns fatos de grande interesse, sobre a Expedição. Finalmente,
várias cartas dos jesuítas do Paraguai pertencentes à coleção De Angelis,
informam com pormenores, que as duas tropas de Raposo Tavares e Pereira de
Azevedo, atravessaram o Paraguai em direção a Oeste. Nenhum dos documentos que
encontramos se refere ao trajeto até Quito. A análise crítica do conjunto das
peças existentes leva-nos à conclusão de que a Bandeira atingiu os Andes, mas
não os percorreu; e, depois de ter visitado La Plata e alguma ou algumas das
cidades próximas, baixou dessa região à Bacia do Amazonas.
Assim, a história aproxima-se da lenda, não
só quanto à extensão da empresa mas também, segundo supomos, ao seu aspecto
político. Seremos, aliás, forçados a limitar, e sob forma esquemática, o tema
desta conferência ao aspecto geográfico e geopolítico da Bandeira.
Vamos, pois, indicar, ainda que
rapidamente, as condições geográficas, econômicas, intersociais, históricas e
políticas que explicam esse empreendimento. Sob o ponto de vista geográfico,
devemos considerar que a Bacia do Prata, desenvolvida no sentido geral do
meridiano pelo eixo do Paraná-Paraguai abre, com os afluentes respectivos,
vários sistemas de estradas naturais, no sentido do paralelo, entre o Atlântico
e os Andes.
Por um desses sistemas já, em 1524, o
português Aleixo Garcia ia das costas do atual Estado de Santa Catarina até à
região argentífera dos Andes, então ainda sob o domínio incaico. Nos meados do
século XVI, os moradores de São Vicente iam daquelas mesmas costas e de
Cananéia tomar o Pequiri e, atravessando o Paraná e a serra do Maracajá,
baixavam o Jejui e o Paraguai até Assunção. A prática usual desse caminho
reflete-se claramente no mapa de Bartolomeu Velho de 1562. Era o chamado
caminho do Piquiri, que Nicolau Barreto, segundo o acertado parecer do
professor Alfredo Ellis Júnior, foi buscar, em 1602, à frente da sua Bandeira,
rumo ao Peru andino.
Por esse ou semelhante caminho seguiram
ainda durante a primeira metade do século XVII mais do que uma tropa de
bandeirantes. Sob o ponto de vista econômico, convém assinalar, São Paulo
oferecia um contraste flagrante com as cidades do Peru seiscentista. Estas,
especialmente Lima, Potosi, La Plata [Sucre] e Cuzco eram então os grandes
centros do comércio, da riqueza e da cultura, em toda a América do Sul.
As minas de prata e de mercúrio, em pleno e
progressivo rendimento até 1630, sustentavam com pequeno esforço dos espanhóis
essa economia florescente.
Lima, comunicando pelo seu porto de Callao
com o Panamá, e pela estrada de Cuzco, Potosi e Tucuman com Buenos Aires,
tornara-se a metrópole mercantil e cultural de toda a América austral, espécie
de Meca para todos os estrangeiros [mormente os portugueses], que ansiavam por
grandes negócios ou cujas atividades só podiam ser utilizadas nos centros
urbanos em plena prosperidade e desenvolvimento.
No polo oposto, São Paulo, era uma pequena
cidade de gente vigorosa, empreendedora, ativa, acostumada aos maiores
trabalhos e fadigas, mas vivendo em míngua de comodidades e mediania de
recursos.
Já as demais cidades brasileiras, como
Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, cuja economia assentava no cultivo da cana
e no fabrico do açúcar desfrutavam condições de vida mais próspera. Essa mesma
fonte de riqueza, que exigia a importação em grande escala do negro de Angola e
da Guiné, tornara o Brasil o intermediário clandestino para esse comércio da
mão de obra escrava, tão necessária também à indústria mineira do Peru. E, se a
prata dos Andes veio intensificar enormemente o comércio e o desenvolvimento da
riqueza no Brasil, o escravo negro, vindo dos portos brasileiros ou de Angola
com escala por esses portos, tornara-se cada vez mais o instrumento
indispensável às atividades industriais no planalto andino.
Se juntarmos aos escravos negros, o açúcar,
as fazendas, as peças de mobiliário rico e várias matérias alimentares,
concluiremos que a América espanhola e a portuguesa, eram sob o ponto de vista
da economia, regiões complementares. (CORTESÃO, 1961) (Continua...)
Bibliografia
ALBERTO NUNES, Carlos. Os Brasileidas ‒ Brasil
‒ São Paulo, SP ‒ Edições Melhoramentos, Coleção Cultura e Ciência, 1962.
CORTESÃO, Jaime. Conferência ‒ A Maior Bandeira do
Maior Bandeirante ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP – Revista de História, n° 45, Janeiro/Março,
1961.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Conferência inédita, proferida no Salão Nobre da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, gentilmente cedida
pela sua direção para publicação na Revista de História como homenagem ao
autor, recentemente falecido [Nota da Redação].
[2] Cartas do Padre Antônio Vieira, coordenadas e anotadas por J.
Lúcio de Azevedo. T. I, Coimbra 1925, N.° LXVI
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVIII
Bagé, 29.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.281, Rio, RJQuinta-feira, 21.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernande
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVII
Bagé, 27.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.279, Rio, RJQuarta-feira, 19.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernande
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVI
Bagé, 24.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.272, Rio, RJ Sábado e Domingo, 08 e 09.02.1964 Jango Atinge sua Maior M
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXV
Bagé, 22.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.268, Rio, RJ Terça-feira, 04.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernandes)