Sexta-feira, 14 de janeiro de 2022 - 16h04
A gente, de alguma forma, até faz isso todo dia,
parecemos adaptados. Mas não é nada perto daqueles que realmente precisam
começar tudo de novo, e o tudo é tudo mesmo, como vemos com tantos atingidos
por enchentes, por desgraças, pela lama, pela injustiça
Não são as nossas manhãs, espreguiçadas. Até porque
muitas vezes nem dormiram, não tiveram sequer onde se encostar. Temos visto,
ouvido e conhecido situações devastadoras de quem perdeu tudo, e que se repetem
cada vez piores seja por condições climáticas, desgoverno e descasos, tragédias
anunciadas e esquecidas logo depois.
Isso é que é resiliência, em sua mais dura e clara
acepção. Não apenas a forma até descuidada e de modinha de que tantos ouvimos
falar em resiliência no final do ano passado, tornando-a uma “palavra do ano”,
entre outras, e da qual saiu vitoriosa “vacina”.
O sentido maior de se recobrar ou se adaptar à má
sorte ou às mudanças vem no sorriso – que não sei de onde tiram forças - do
entrevistado que mostra forças e fé para reconstruir sua vida, sua casa, suas
coisas. Começar de novo foi o que mais ouvi e me chamou a atenção esta semana
de tantas enchentes, chuvas, desabamentos, rompimentos de barragens, vidas e
histórias sendo levadas pelas águas com a mesma força de furacões. Tudo vai ao chão.
Ou é encoberto.
Começar de novo. Os olhos brilham buscando em algo
abstrato, nos céus, no olhar para cima, a força do recomeço, mesmo que ainda
não vejam o Sol ou o céu azul. Mulheres com seus filhos nos braços festejam a
vida e anunciam que irão atrás de tudo o que perderam – essa força inexplicável
da fé tão bem guardada em lugar que sempre sobrevive a qualquer mau tempo.
Estar vivo é o que importa. Poder recomeçar. A chance.
Essa mesma fé move a solidariedade dos que
transitam em meio à destruição levando pequenos tijolos para esse início, seja
a comida para dar força, as roupas doadas, os brinquedos que possam distrair as
crianças abrigadas sob algum telhado que ainda tenha restado, os colchões que
delimitarão seus espaços por uns tempos.
Ali começa a reconstrução. A partir desse pouco é
que muitos vão começar de novo, e muitos deles já em idade avançada, alguns até
acostumados porque esse raio, sim, já caiu outras vezes no mesmo local, no
mesmíssimo local onde já construíam seus castelos com seus mínimos, uma
geladeira, um fogão, talvez um armário, um berço, uma cama, uma tevê, uma mesa,
um quadrinho na parede, algum porta retrato, um tapetinho. Um bichinho de
estimação, que pode ter sido salvo, e que se não o foi, será esse grande motivo
de choro dessas pessoas fortaleza tão especiais encontradas nos cantinhos de
nosso país. Nas cidades e povoados, alguns com nomes até bem poéticos,
originais, mas dos quais nunca tínhamos ouvido falar até que fossem
arremessados em outros destinos.
Acompanhar tragédias, ouvir os depoimentos dos
atingidos, documentar suas vidas para o noticiário é, talvez, uma das missões
mais difíceis para qualquer jornalista, muitas vezes ele próprio ali com seus
dramas pessoais. Os repórteres de rua, esses ainda tão pouco reverenciados, sem
glamour, sem tempo para muitas elucubrações, que também têm de sair vivos e a
tempo dessas situações, sempre recomeçando, buscando errar pouco, e até tentar
demonstrar pouco se emocionar, porque alguém falou que temos de ser imparciais.
Isso os marcará por toda a vida, posso garantir,
porque sou marcada pelas que noticiei, pelos lugares que conheci, pelas pessoas
que entrevistei em situações que jamais esqueci. Com elas aprendi lições de
força e sobrevivência. Conheci a força dessa fé, seja em Deus, Jesus, Cristo,
Oxalá. Pude ver suas histórias nas marcas de seus rostos, e entender o
significado de vida e morte, tão comuns, tão próximos.
Entender o que é exatamente tocar a vida.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de
comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom
para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. Nas livrarias e
online, pela Editora e pela Amazon.
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