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Marli Gonçalves

Efeito retardado e mortal


Efeito retardado e mortal - Gente de Opinião

Corremos atrás dos fatos que já se antecipavam aos nossos olhos, sempre atrasados, em um efeito retardado como se vivêssemos em um sono profundo do qual despertamos bem tarde. Sabemos dos perigos e defeitos das coisas, dos atos, empurramos, ignoramos, até que elas aconteçam...

Aconteceu, virou notícia, até era esse o slogan da extinta Revista Manchete. Assim é. Tarde demais. Aí depois todos lamentam, choram, declaram que já sabiam que ia dar nisso ou aquilo, correm para se explicar, jurar que todas as providências serão tomadas, as investigações realizadas. Que colaborarão com a justiça (aliás, adoro essa frase, como se não fosse obrigatório). O “eu já sabia” se espalha, isso quando não começam a aparecer relatos anteriores de perigos já publicados ou nas redes sociais.

Já percebeu por exemplo o número de acidentes terríveis e que depois vão ver que os motoristas nem habilitação tinham, além de muitas vezes estarem bêbados? Ou que os carros ou outros veículos já vinham dando panes há algum tempo? No caso do avião da VoePass que caiu em Vinhedo está percebendo o quanto a situação já gritava, independente se o voo enfrentou gelo, turbulência, ou seja o que ainda estiver em investigação como causa? 62 mortes. Toda semana, também, sabemos da queda de pequenas aeronaves. Quem as fiscaliza? Nas fazendas, nos aeroportos e pistas do interior, os donos usam para ir até ali, como se bicicletas ou cavalos fossem. Quem já voou em algum deles bem sabe disso. Tudo parece normal, trêmulos.

O mesmo vem acontecendo infernalmente nesse absurdo número de feminicídios batendo recordes no país. Só no Estado de São Paulo, 124 casos no primeiro semestre deste ano. Em 85 deles, mulheres foram mortas em suas casas. Cansada de ouvir – depois - depoimento de vizinhos ou parentes dando entrevistas consternados e relatando que as agressões eram frequentes, que ouviam, que tinham pedido para a vítima se proteger, deixar o safado, coisas assim. E só. Como se fosse fácil para uma mulher em perigo se defender sozinha, sem apoio de quem deveria ou poderia, delegacias, companhias para lhes dar proteção, medidas protetivas reais, ação dos vizinhos quando escutam pancadarias. Atenção às crianças, atenção a essas mulheres.

Isso é questão de gênero, de comportamento, de civilidade. Atinge a todas, independentemente de sua classe social, raça, idade, beleza, estado civil - namorados matam, noivos matam, maridos matam, ex-namorados, ex-maridos, ex-companheiros matam. Não se pode normalizar qualquer ataque – ah, mas ele estava bêbado, desempregado, nervoso, ela provocou, já sabia. Meu sangue ferve só em ouvir esses comentários, e são absolutamente comuns. Vou contar: outro dia, era madrugada, aqui, ao fechar a janela na hora de dormir vi três carros de polícia na porta do prédio. Liguei para a portaria. Um vizinho já useiro e vezeiro de confusões, tinha, digamos, machucado a namorada, que chamou a polícia. O porteiro: “É, o braço dela parece machucado...E não é a primeira vez”. Aproveitei dias depois uma reunião de condomínio para falar sobre o assunto e ouvi que, “puxa, ele é legal...anda nervoso, o conheço e ele não é assim, deve estar com algum problema”. Pior é que soube ainda que quem saiu presa, algemada, foi a namorada que, nervosa, desacatou a policial.

(Parênteses para um rápido depoimento pessoal: um dia fui salva e estou aqui viva contando histórias para vocês, porque uma vizinha alerta me ajudou).

Não podemos ficar calados, assobiando, fazendo cara de nuvem quando presenciamos qualquer desmando, seja o que for, com gente, máquina, fauna, flora. Seja em casa, na família, no vizinho, na fábrica, no trabalho, na sua função, nas ruas, em qualquer canto. Sabemos que muitos são obrigados ao silêncio, sob pena de demissão, de as coisas piorarem, serem obrigados a acatar ordens, terem medo ou não quererem se envolver. Boca calada já engoliu mosca, os olhos veem e o coração sente.

Cuidado, que a pena do silêncio e da cabeça baixa pode ser terrível: a próxima vítima pode até ser você. Ou alguém que ama. Ou que apenas conheça. Ou não. Vai conseguir dormir depois que acontecer e virar notícia?

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo. marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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