Sábado, 17 de agosto de 2024 - 08h36
Corremos atrás dos fatos que já se antecipavam
aos nossos olhos, sempre atrasados, em um efeito retardado como se vivêssemos
em um sono profundo do qual despertamos bem tarde. Sabemos dos perigos e
defeitos das coisas, dos atos, empurramos, ignoramos, até que elas aconteçam...
Aconteceu, virou notícia, até era esse o slogan da extinta
Revista Manchete. Assim é. Tarde demais. Aí depois todos lamentam, choram,
declaram que já sabiam que ia dar nisso ou aquilo, correm para se explicar,
jurar que todas as providências serão tomadas, as investigações realizadas. Que
colaborarão com a justiça (aliás, adoro essa frase, como se não fosse
obrigatório). O “eu já sabia” se espalha, isso quando não começam a aparecer
relatos anteriores de perigos já publicados ou nas redes sociais.
Já percebeu por exemplo o número de acidentes terríveis e
que depois vão ver que os motoristas nem habilitação tinham, além de muitas
vezes estarem bêbados? Ou que os carros ou outros veículos já vinham dando
panes há algum tempo? No caso do avião da VoePass que caiu em Vinhedo está
percebendo o quanto a situação já gritava, independente se o voo enfrentou
gelo, turbulência, ou seja o que ainda estiver em investigação como causa? 62
mortes. Toda semana, também, sabemos da queda de pequenas aeronaves. Quem as
fiscaliza? Nas fazendas, nos aeroportos e pistas do interior, os donos usam
para ir até ali, como se bicicletas ou cavalos fossem. Quem já voou em algum
deles bem sabe disso. Tudo parece normal, trêmulos.
O mesmo vem acontecendo infernalmente nesse absurdo número
de feminicídios batendo recordes no país. Só no Estado de São Paulo, 124 casos
no primeiro semestre deste ano. Em 85 deles, mulheres foram mortas em suas
casas. Cansada de ouvir – depois - depoimento de vizinhos ou parentes dando
entrevistas consternados e relatando que as agressões eram frequentes, que
ouviam, que tinham pedido para a vítima se proteger, deixar o safado, coisas
assim. E só. Como se fosse fácil para uma mulher em perigo se defender sozinha,
sem apoio de quem deveria ou poderia, delegacias, companhias para lhes dar
proteção, medidas protetivas reais, ação dos vizinhos quando escutam
pancadarias. Atenção às crianças, atenção a essas mulheres.
Isso é questão de gênero, de comportamento, de civilidade.
Atinge a todas, independentemente de sua classe social, raça, idade, beleza,
estado civil - namorados matam, noivos matam, maridos matam, ex-namorados,
ex-maridos, ex-companheiros matam. Não se pode normalizar qualquer ataque – ah,
mas ele estava bêbado, desempregado, nervoso, ela provocou, já sabia. Meu
sangue ferve só em ouvir esses comentários, e são absolutamente comuns. Vou
contar: outro dia, era madrugada, aqui, ao fechar a janela na hora de dormir vi
três carros de polícia na porta do prédio. Liguei para a portaria. Um vizinho
já useiro e vezeiro de confusões, tinha, digamos, machucado a namorada, que
chamou a polícia. O porteiro: “É, o braço dela parece machucado...E não é a
primeira vez”. Aproveitei dias depois uma reunião de condomínio para falar
sobre o assunto e ouvi que, “puxa, ele é legal...anda nervoso, o conheço e ele
não é assim, deve estar com algum problema”. Pior é que soube ainda que quem
saiu presa, algemada, foi a namorada que, nervosa, desacatou a policial.
(Parênteses para um rápido depoimento pessoal: um dia fui
salva e estou aqui viva contando histórias para vocês, porque uma vizinha
alerta me ajudou).
Não podemos ficar calados, assobiando, fazendo cara de
nuvem quando presenciamos qualquer desmando, seja o que for, com gente,
máquina, fauna, flora. Seja em casa, na família, no vizinho, na fábrica, no
trabalho, na sua função, nas ruas, em qualquer canto. Sabemos que muitos são
obrigados ao silêncio, sob pena de demissão, de as coisas piorarem, serem
obrigados a acatar ordens, terem medo ou não quererem se envolver. Boca calada
já engoliu mosca, os olhos veem e o coração sente.
Cuidado, que a pena do silêncio e da cabeça baixa pode ser
terrível: a próxima vítima pode até ser você. Ou alguém que ama. Ou que apenas
conheça. Ou não. Vai conseguir dormir depois que acontecer e virar notícia?
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em
São Paulo. marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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